[Recorte de ideias] O pelotense que fundou o movimento gay no Brasil

João Antônio Mascarenhas depondo na constituinte, ao lado, o deputado Antônio Mariz, da Paraíba.

*Luiz Lanzetta

Pouco depois do lançamento do Triz , um pelotense exilado no Rio de Janeiro havia décadas me procurou. João Antônio Mascarenhas, advogado e um dos pioneiros do movimento gay no Brasil, estava lançando Lampião de Esquina, primeiro jornal dedicado à causa. O conselho editorial, além de João, estampava nomes como os do antropólogo Peter Fry, do futuro autor de telenovelas Aguinaldo Silva, do pintor Darcy Penteado, do crítico de cinema Jean-Claude Bernardet e do escritor João Silvério Trevisan. Mas o jornalismo era apenas uma das muitas trincheiras do João.

Entre 1978 e 1998, ele também criou vários grupos e associações de defesa dos direitos dos homossexuais, promovendo uma evasão sem retorno ao armário. Com a ajuda de sua prima, Gisela Dias da Costa, minha amiga e parceira de sessões do Clube de Cinema de Pelotas, João me descobriu em Florianópolis, cidade para a qual eu me transferira e onde acabara de ser pai pela primeira vez. Na ilha, contemplando a jovem família, ele soltaria uma tirada ferina, uma das suas principais características.
– Já vi que não honras as tradições da nossa terra, cutucou-me ele.

Pela capa do Triz, que trazia como manchete um imenso “Frescura?”, João tinha a esperança de que se tratasse de um jornal gay. Não era. Mas ajudei lançar o Lampião em um programa de TV em Florianópolis, algo quase impensável na época. E nasceu ali uma grande amizade. Acompanhei as vitórias e derrotas do João dali para frente, especialmente durante a sua atuação na Constituinte de 1988, que cobri como repórter de O Globo e depois, já morando em São Paulo, como redator do Informe JB, do Jornal do Brasil.

Pelotas tem os seus heróis e marcos do século passado. Por exemplo: Kleiton, Kledir e Vitor Ramil, na música; Emerson, o nosso capitão da seleção brasileira de futebol. No jornalismo, um mártir, Tim Lopes. Na literatura, João Simões Lopes Neto. E, na política dos direitos individuais, temos um campeão: João Antônio Mascarenhas.

O apresentador sem graça

Minha última participação como jornalista nas causas do João foi no começo de 1993, quando encerrava, mais uma vez, uma fase da minha vida profissional. Morava então em São Paulo e estava me despedindo do velho JB e da profissão. Dali em diante me dedicaria à assessoria e consultoria política.

Toca o telefone e lá está a voz calma porém indignada do João. Ouço pela primeira vez o nome de uma cidade: Coqueiro Seco, situada na periferia de Maceió. João me fazia a denúncia de um crime anunciado, que pouco depois se confirmaria.

Em março daquele ano, o vereador José Renildo dos Santos, homossexual militante, seria seqüestrado, torturado e esquartejado, depois de sofrer um período de ameaças diretas a sua vida. O autor: o fazendeiro José Renato de Oliveira e Silva.

O telefonema do João era para gritar ao mundo o assassinato que estava sendo urdido. Fiz o que pude: coloquei uma nota na coluna que já não tinha muita influência na época. Outros veículos deram cobertura, mas de nada adiantou. A morte de José Renildo teve repercussão internacional. Na Austrália, por exemplo, foi criado um prêmio de direitos humanos com o nome do vereador alagoano. Poderia ser mais uma ocorrência perdida, como tantas que ainda hoje acontecem, se João não tivesse tido a coragem, por sua conta e risco, de se deslocar para os confins do país, anotar as ameaças e tentar impedir sua consumação.

Em seguida, João ligou de novo. Queria o telefone de Jô Soares, que havia feito um comentário irônico na TV Globo sobre a morte do vereador. Por ter errado de Jô na agenda, só fui saber da longa e violenta reação do João ao telefone com o apresentador, que lamentavelmente não aconteceu, muito tempo depois.

– Ô Lanzetta! Quem é o cara que acha que eu sou o Jô Soares e gastou toda a minha secretária eletrônica me xingando de fascista para baixo?, me perguntou a minha ex-aluna e amiga, Jô Ristow, catarinense radicada em São Paulo, numa mesa de bar, lamentando a fita inutilizada, mas que serviu como registro do que deve ser o mais longo xingamento merecidamente recebido pelo apresentador que fizera graça com um crime hediondo.

Advogado e poliglota

Assim como fazia em alguma cidadezinha perdida no interior do Brasil, João transformava-se num guerreiro da causa em qualquer capital do mundo. Desde 1997 e bancado por seus próprios recursos, visitou dirigentes dos movimentos gays da Dinamarca aos Estados Unidos. Há muito o que contar sobre ele. Seu melhor perfil foi escrito por Robert Howes e está na Unicamp, no Centro de Documentação Edgard Leuenroth, que guarda seu imenso acervo. Em 2005, João Antônio foi homenageado na Parada Gay em São Paulo, “Parceria Civil Já: Direitos Iguais, nem menos nem mais”, foi o tema do evento. Naquela oportunidade, João, já falecido, foi representado por Luís Mott, um de seus eternos parceiros de ativismo.

Seu período de militância mais intensa situa-se entre o final dos anos 1970 e o término da década seguinte. Junto com Mott, criador do Grupo Gay da Bahia (GGB), manteve o combate durante o período mais agudo da epidemia de Aids e do desânimo que se seguiu ao primeiro surto de ativismo gay brasileiro.

Primeiro homossexual assumido a discursar no Congresso Nacional, foi também o primeiro a sofrer os ataques dos “felicianos” e demais conservadores da época. A todos respondia com elegância e cultura jurídica. Escreveu um livro, publicado por conta própria, hoje esgotado, onde cruza os votos anti-minorias com as posições políticas mais reacionárias e corruptas dos congressistas.
Sua formação jurídica ensinou-lhe a importância da lei na estrutura da sociedade e a necessidade de fundamentar os seus argumentos sobre os fatos. Sabendo empregar a terminologia jurídica especializada, desarmava seus inimigos políticos, geralmente menos preparados.

Na Constituinte, o debate principal era a inclusão do termo “orientação sexual” no texto que previa “o bem de todos, sem preconceitos contra quaisquer formas de discriminação”.

“Cada vez que o assunto entrava em pauta”, narra o jornalista Roldão Arruda, em seu livro Dias de ira – Uma história verídica de assassinatos autorizados, “a temperatura da Assembleia subia e os debates descambavam para insultos pessoais. Os constituintes contrários à petição dos homossexuais costumavam insinuar que seus defensores tentavam legislar em causa própria. A fúria provinha especialmente de deputados ligados às igrejas evangélicas”.

No dia 28 de janeiro de 1988, o termo foi rejeitado. Dos 559 constituintes, 429 se opuseram à proposta de inclusão de proibição de discriminação por orientação sexual no texto constitucional…

Universo sem voz

Os grupos pioneiros na defesa dos direitos LGBT foram o extinto Somos (1978), de São Paulo, o grupo carioca de João, o Triângulo Rosa, e o Grupo Gay da Bahia (1980) – hoje o mais antigo em atividade na América Latina.

Em 1985, João colaborou com uma das principais vitórias do movimento gay do país, quando o Conselho Federal de Medicina retirou “homossexualismo” da classificação de doença.

Em 1977, João recebeu Winston Leyland, editor da editora Gay Sunshine Press, de San Francisco, encontro que gerou uma série de ações históricas a favor dos direitos da cidadania LGBT do Brasil, entre elas a fundação de Lampião da esquina e do grupo Triângulo Rosa (1977-1988).

Nascido em plena ditadura, o Lampião foi corajoso na luta contra o preconceito e em favor dos direitos civis LGBT. Dentro do cenário da imprensa alternativa do Brasil, representou um universo então sem voz. De 1978 a 1981, a publicação teve 38 edições. Circulando em todo o país, sua tiragem oscilava entre 10 mil e 15 mil exemplares. O conselho editorial implodiu antes do fim do jornal. Descontente com o personalismo de alguns, João afastou-se e passou a simples colaborador sem deixar de dar seu apoio material.

O jornal foi um dos pioneiros na defesa dos direitos dos homossexuais no Brasil

 

O inglês Robert Howes, pesquisador e amigo de João, deixou um relato sobre o nosso personagem em “João Antônio Mascarenhas (1927-1998): pioneiro do ativismo homossexual no Brasil”. Nele, lembra que João escreveu aos diretores de A Tarde, de Salvador, protestando contra matérias publicadas pelo jornal. Nelas, homossexuais eram chamados de pervertidos, anormais e imorais. João também produzia relatos sobre situação geral dos homossexuais brasileiros e do movimento homossexual.

Howes descreve-o como um solitário que morava num amplo apartamento em Ipanema. A decoração clássica lembrava um dos tantos gaúchos que amarraram os cavalos no obelisco na Revolução de 30. Mas suas boas lembranças do Sul eram as de sua prima Gisela, a única representante de sua família com quem mantinha contato. Ele saiu jovem de Pelotas por não poder revelar abertamente sua opção sexual.

Howes conta que João não fez questão de ficar famoso. Preferia viver discretamente. Só no final da vida, houve um movimento para reconhecer sua contribuição. Foi em 1994, quando recebeu o Prêmio Pedro Ernesto, da Câmara dos Vereadores do Rio. Um amigo, Augusto Andrade, escreveu a frase definitiva no seu necrológio: “Foi com ele que tudo começou”.

Raízes pelotenses

Advogado e poliglota,  ro, onde viveu a maior parte de sua vida. Depois da Segunda Guerra Mundial, passou uma temporada em Paris, radicando-se no Rio em 1956. Naquela década, trabalhou como funcionário público. Saiu com o golpe militar de 1964. Após o falecimento de seu pai, João passou a viver com recursos provenientes de herança, o que lhe permitiu dedicar-se em tempo integral à militância. Apesar de “naturalizar-se” carioca, mantinha um grande amor por Pelotas, que visitava esporadicamente. Gostava de brincar utilizando gauchismos que depois explicava com ar professoral a seus amigos.

João Antônio era filho de Balbino Mascarenhas e Irene Leite. Pecuarista, proprietário de uma grande extensão de terras em Bagé, Balbino Mascarenhas ocupou o cargo de secretário estadual de Agricultura durante a gestão do governador Walter Jobim (1947/51).

João Antônio teve dois irmãos: Marco Antônio e Maria Cecília. Marco Antônio dedicou-se à pecuária nas terras da família em Bagé. Já Maria Cecília casou-se com o médico Labieno Jobim, filho de Walter Jobim, e teve uma filha, Maria Inês, que se tornou professora da faculdade de veterinária da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Juvenal Dias da Costa, médico sanitarista e professor da Universidade Federal de Pelotas, filho de Gisela, a prima mais próxima de João Antônio Mascarenhas, conviveu com o primo em segundo grau no final dos anos 1970 quando fez sua residência na Escola Nacional de Saúde Pública, no Rio de Janeiro.

– João Antônio era uma pessoa agradabilíssima, diz Juvenal.

Era um homem muito culto. Embora pertencendo a uma família muito rica, ele vivia modestamente no Rio de Janeiro. Nunca explorou suas terras, sempre as arrendou para terceiros. Era também muito corajoso. Ao lado do médico Osvaldo Foratini, ele levou adiante a luta para retirada do homossexualismo da CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde). João Antônio gostava muito de viajar. De todos os países que conhecia ele trazia trajes típicos. Lembro de vê-lo, no seu apartamento no Leblon, vestido com trajes que havia comprado no Marrocos e na Turquia.

Durante o tempo que durou sua residência na ENSP, Juvenal Dias da Costa ficou alojado em um apartamento na rua visconde de Pirajá que lhe foi generosamente cedido por João Antônio.

– Na primeira vez em que visitei o Rio de Janeiro, em 1978, ele me levou a passear, a pé. Mostrou-me Copacabana, Leblon e Ipanema num só dia. Ele fez questão de me levar até o prédio onde funcionava o jornal O Pasquim. João Antônio era um excelente conversador. Sempre que vinha a Pelotas ele visitava minha mãe, que era a sua prima mais querida. Ele gostava de recordar que quando menino era levado à Praça Coronel Pedro Osório pela minha mãe, que era um pouco mais velha do que ele. Todo ano minha mãe passava uns dias com ele no Rio de Janeiro. Eles tinham uma forte relação fraterna.

* Segundo a advogada Maria Amélia Dias da Costa, irmã de Juvenal, João Antônio Mascarenhas trabalhou por alguns anos na Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), entidade então ligada ao CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)

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