Precisamos falar sobre o machismo no samba de BH

Samir Pereira/Samba Top

Por Zaíra Magalhães*

Zapeando pelo feed das minhas redes sociais no começo da semana me deparei com uma postagem de um evento de samba e pagode, que me chamou atenção: na publicidade do evento estão ilustradas dez bandas que vão se apresentar, 55 artistas no palco, e NENHUMA mulher. Como é possível que alguém possa ver uma programação dessas não achar pelo menos estranho não ter nenhuma instrumentista ou cantora no palco?

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Nos dias seguintes, me apareceu mais essa aqui: uma festa com quatro bandas completamente masculinas, em que as mulheres que por ventura viessem a compor o público estariam isentas de pagar pela entrada e pelo consumo de bebidas. Isso me fez pensar em qual a função das mulheres em eventos como esse, já que a gente não contribui pros lucros. Isso acaba me fazendo achar que a gente serve para atrair homens, que poderão aproveitar-se da vulnerabilidade de mulheres bêbadas sem precisar gastar dinheiro com elas. E isso deve fazer as casa lotar.

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Vendo essas duas imagens, também me lembrei de uma reportagem que li há uns meses, que falava sobre um costume presente nos sambas mais tradicionais de Belo Horizonte, de oferecer comida gratuita aos convidados em dias de roda. O que me incomoda, nesse caso, não é o tema da matéria, mas o fato de que, comumente, ao falarmos da tradição, as figuras associadas à música são as masculinas, e às mulheres é atribuída a função de cuidado, como comprar e preparar o alimento.

Isso exemplifica uma questão bastante cara para as mulheres que trabalham na cadeia produtiva do samba em Belo Horizonte, seja tocando, produzindo eventos, agenciando artistas, operando som e luz ou em qualquer outra área: o machismo.

Importante destacar: essa não é uma tentativa de apontar os dedos para indivíduos, ou de dizer que a responsabilidade pelo machismo no samba é exclusiva das pessoas envolvidas nos casos que usei como exemplo. Temos plena consciência de que as rodas de samba, em todos os lugares, no geral, são compostas majoritariamente por homens. Não é exclusividade desses colegas citados, nem exclusividade de Belo Horizonte. Não é nem é exclusividade do samba. A cena do forró em BH, por exemplo, chega a ser nojenta, de tão machista.

Posto isso, esse textão aqui tem a intenção de provocar tanto trabalhadores quanto público para pensarem sobre qual é o lugar das mulheres na cena de samba e pagode em Belo Horizonte. Será que a gente só serve mesmo para estar na cozinha e limpando banheiros, ou dançando ao redor dos caras nas rodas de samba?

Não estou propondo nada inovador, mas tentando trazer o que parece ter sido esquecido. O samba, como conhecemos hoje, foi gestado nos terreiros  das tias pretas no Rio de Janeiro, e as mulheres vêm sendo, desde sempre, as salvaguardas dessa tradição. E considerando que essa é mais uma das manifestações herdadas dos negros escravizados, taí outro motivo para questionarmos essa escassez de mulheres em lugares de destaque.

A cultura e a organização social da maioria das nações africanas pré-coloniais é matrilinear, ou seja, têm nas mulheres a sua referência histórica, social, e cultural. As nossas mais velhas estão aí desde sempre resistindo, fazendo samba de qualidade e questionando o esquecimento voluntário dos homens sobre quem são as mantenedoras dessa tradição desde seu surgimento.

Grupo Teresa se apresenta na Virada Cultural de BH, em julho deste ano (Zaíra Magalhães/Divindade Cultural)

Belo Horizonte tem diversas artistas e produtoras fazendo samba e pagode. Bandas formadas exclusivamente por mulheres, como Grupo Teresa, Samba na Roda da Saia, Samba de Comadre, Batuque Beauvoir, Pagode das Minas e outras, que circulam pelos festivais e casas do Estado, além de promoverem seus próprios eventos. Cantoras têm aos montes: Aline Calixto, Manu Dias, Dóris, Cinara Ribeiro, Adriana Araújo, Dona Elisa… Clara Nunes era mineira. E as instrumentistas que integram rodas mistas e que passariam pelo crivo de qualidade de qualquer ouvinte mais criterioso existem às dezenas, mas são bem menos vistas e pagas que os homens que fazem a mesma coisa que elas.

Nós promovemos nossos próprios eventos, temos nossas próprias cenas, como é o caso do 2º Encontro Nacional de Mulheres na Roda de Samba, que vai acontecer no dia 9 de novembro, com rodas de samba simultâneas em 22 cidades brasileiras e uma na Argentina, e Belo Horizonte está entre elas.

Criamos espaços que sejam seguros para mulheres e LGBTs viverem seu momento de lazer. Esse é o caso da Yanã, casa no Santa Efigênia, administrada por mulheres, que tem somente mulheres e LGBTs em sua programação musical, e realiza uma roda de samba periódica, sempre aos domingos. A próxima acontece no dia 13 de outubro, com show do Grupo Teresa. E a casa vai receber o Festival Arreda de samba e pagode nos dias 14 e 15 de dezembro, feito apenas por musicistas e produtoras, com mais de 30 atrações. Marquem em suas agendas!

É também o caso do Samba das Pretas, que vem com o argumento de que, se o samba fosse uma pessoa, seria uma mulher preta. São realizadas edições mensais desse evento, colocando as mulheres em lugar de protagonismo, inclusive como público consumidor, em vez de usá-las para atrair homens por motivos questionáveis. 19 de outubro tem mais uma edição. Vale a pena!

As cantoras Adriana Araújo e Júlia Rocha se apresentam no Samba das Pretas (Renca Produções/Divulgação)

Além dos nossos próprios nichos, nós queremos, também, estar nos espaços ocupados pelos homens, fazer parte das rodas, tendo nosso trabalho conhecido e reconhecido pelos diferentes públicos. Afinal de contas, esse é o nosso trabalho, queremos estar onde o público – e o dinheiro – está. Não como samba de mulher, mas como samba. Como mulheres nessa área, é necessário que sejamos pelo menos duas vezes melhores do que os caras para estarmos nos espaços, enquanto os erros masculinos são tolerados. E estamos cumprindo este requisito com louvor.

E se a preocupação é financeira, a gente leva público, inclusive qualificado, formado, que entende que quando se paga 15 ou 20 reais para entrar em um bar com música, está se pagando pelo serviço prestado por profissionais que vivem disso. Sabemos que a preocupação não é somente financeira, mas é um dos principais motivos apresentados pelos donos de bares, casas de show e promotores de eventos para maquiar seu machismo e não contratar bandas femininas.

Não somos concorrentes, tem espaço para todo mundo. E que bom que o público pode escolher que locais frequentar de acordo com seu bem estar e bolso. O fato é que as mulheres estão aí, fazendo e consumindo samba há bastante tempo, e não tem como nos ignorarem. Mas lembrem-se: não estamos pedindo passagem, nós abrimos o caminho por nós mesmas, com as ferramentas que temos, e é melhor estar ao nosso lado do que contra nós, porque o futuro é feminino, e o samba é uma mulher preta.

O que os produtores dizem

Procurados para se manifestar sobre a curadoria das bandas a se apresentarem no evento Aniversário Pagode do Rei, os organizadores preferiram não se manifestar sobre o assunto.

Os responsáveis pela casa Quintal do É o Samba informaram que a programação artística deste evento foi definida pela banda Pagode do Rei, e que em outros eventos há mulheres entre os artistas. Informou, ainda, que na equipe de produção e gestão da Loma Produções, composta por três pessoas, uma delas é mulher.

Após tentativas de contato por telefone e e-mail, os responsáveis pelo evento Sextinha do Arena não se manifestaram até a data da publicação deste artigo.


* Zaíra Magalhães é jornalista, gestora pública e produtora cultural. Belo-horizontina de nascimento e paulistana de criação, fica zanzando entre as duas cidades procurando o melhor de cada uma. Feminista interseccional, disposta ao diálogo e à criação de pontes, mas só com quem estiver a fim.

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