Estudante autista perde vaga reservada a PCDs na UFMG: ‘Não me enquadro para eles’

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A jovem, que passou no curso de Ciências Biológicas, chegou a assistir a duas semanas de aula (Amanda Dias/BHAZ)

O relato de uma estudante de 19 anos movimentou as redes sociais durante esta semana e levantou um debate sobre o acesso reservado a PCDs (Pessoas Com Deficiência) ao ensino superior. No Twitter, a jovem que se identifica como “Jun” disse ter tido a sua vaga no sistema de cotas da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) indeferida, mesmo ela tendo comprovado, com laudos médicos, estar dentro do espectro autista.

“Alegaram que meu desempenho nos níveis de ensino anteriores ocorreu de forma regular. E levam em consideração não só o CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde), mas também a existência de impedimentos para a realização das atividades cotidianas e acadêmicas. Então eu não me enquadro para eles”, escreveu a estudante.

Em conversa com o BHAZ nesta quinta-feira (14), a jovem – que preferiu não se identificar na reportagem – conta que havia se planejado durante meses para estudar Ciências Biológicas na universidade, realizando, assim, seu sonho de se tornar cientista. Passadas duas semanas de aulas, no entanto, sua vida virou de cabeça para baixo após receber um email da UFMG.

“No email, eles falam que a minha matrícula no Sisu (Sistema de Seleção Unificada) foi indeferida na banca de verificação e validação PCD. Eu entendi que eles não me enquadraram como PCD. Depois disso, caso eu quisesse que a análise fosse refeita, eu deveria entrar com recurso. Mandei mais documentos – um relatório da médica e outro da psicóloga – e eles negaram”, relata ela.

‘Planejei tudo pra estar na UFMG’

Para conseguir a tão sonhada vaga na universidade, a jovem precisou – além de nota suficiente no Sisu para passar no curso escolhido – enviar laudos médicos que comprovassem sua deficiência para se encaixar à vaga PCD e também passar por uma banca de avaliação. Durante a conversa, ela conta não ter se sentido à vontade diante dos avaliadores, que faziam perguntas amplas e até questionavam algumas de suas respostas.

“Eu não acho que não deveria existir a banca. Mas eu acho, por exemplo, que eles deveriam fazer um questionário personalizado pra cada deficiência. Tanto que a moça perguntou se eu tinha dificuldade de mobilidade, então percebi que as perguntas eram gerais”, relembra a estudante.

Agora, a jovem disse que está se mobilizando para levar o caso à Justiça e agradece pelo apoio que tem recebido pelas redes sociais. “Eu planejei tudo pra vir pra UFMG. Eu tô morando perto da UFMG. Eu tirei nota suficiente pra passar na UFMG, não tinha motivos pra eu não estudar aqui”, desabafa ela.

O que diz a UFMG?

Em nota enviada ao BHAZ, a UFMG alega que o sistema de cotas passou a integrar PCDs em 2017 e que, desde então, “tem adotado medidas para aperfeiçoar” a seleção. A instituição reforça que os candidatos que optarem, no Sisu, pela modalidade “deficiência no sistema de reserva de vagas” devem, além de apresentar a documentação exigida, passar “por uma comissão integrada por diferentes profissionais das áreas da Saúde e Ciências Humanas – médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos, enfermeiros, etc”.

A universidade argumenta que a banca avalia “além da legislação que rege o campo das deficiências, os laudos e exames apresentados pelo candidato, a Classificação Internacional das Doenças (CID) e entrevista semiestruturada”. Sobre o relato da estudante, que já soma mais de 20 mil interações, UFMG afirmou que “não comenta resultados ou casos isolados para preservar a privacidade das pessoas envolvidas” (leia na íntegra abaixo).

Nota da UFMG na íntegra

A reserva de vagas nas instituições federais de ensino superior foi instituída pela Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012, com o objetivo de corrigir desigualdades históricas presentes na sociedade brasileira. A lei determina que 50% das vagas dos processos seletivos de graduação devem ser reservadas para estudantes de escolas públicas, e entre esses, negros, pretos, pardos e indígenas.

Em 2017, passou também a contemplar pessoas com deficiência. Na UFMG, o primeiro edital de reserva de vagas que incluiu pessoas com deficiência foi publicado no primeiro período letivo de 2018. Desde então, até o segundo período letivo de 2021, 562 candidatos que requisitaram vagas por meio dessa modalidade foram aprovados e entraram para a Universidade. As pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) também são contempladas pela reserva de vagas.

Na UFMG, a reserva de vagas integra uma consistente política de ações afirmativas além de programas de inclusão destinados a promover grupos socialmente discriminados, promove práticas acadêmicas de acolhimento, atenção e apoio aos estudantes em suas necessidades, em seu aproveitamento acadêmico e no enriquecimento de sua permanência na instituição.

A UFMG tem adotado medidas para aperfeiçoar os procedimentos para atender à Lei das Cotas para garantir a lisura do processo. Em relação às pessoas com deficiência, a Universidade se apoia também na Lei 13.146, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, publicada em 6 de julho de 2015, “destinada a assegurar e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania”.

A Lei 13.146 também estabelece, em seu primeiro parágrafo do Artigo 2, os critérios para considerar a pessoa com deficiência e a necessidade de uma avaliação “biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar” que compõe a Banca de Verificação e Validação (BVV). Na Universidade, essa avaliação é realizada, sobretudo, para identificar em que medida o encontro entre a deficiência e as barreiras sócio ambientais interferem no desempenho das atividades da vida diária (AVD) e na participação social; a necessidade de acessibilidade, tecnologia assistiva ou adaptação; e a demanda de apoio de terceiros para realização das atividades do dia a dia e acadêmicas, que podem impactar em seu percurso acadêmico no ambiente universitário.

Nesse sentido, os/as candidatos/as que optaram pela modalidade deficiência no sistema de reserva de vagas, além de apresentarem a documentação exigida pelo edital, passam por uma comissão integrada por diferentes profissionais das áreas da Saúde e Ciências Humanas – médicos, psicólogos, fonoaudiólogos, pedagogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos, enfermeiros, etc. Para efeitos de análise, a BVV-PCD considera, além da legislação que rege o campo das deficiências, os laudos e exames apresentados pelo candidato, a Classificação Internacional das Doenças (CID) e entrevista semiestruturada baseada nos princípios da Classificação Internacional de Funcionalidade e Incapacidade (CIF). A UFMG ressalta que não comenta resultados ou casos isolados para preservar a privacidade das pessoas envolvidas.

A UFMG reitera que a política de cotas tem o objetivo de democratizar o acesso da população brasileira à universidade pública e que cabe à instituição estabelecer e zelar pelo cumprimento de procedimentos rigorosos de verificação, a fim de salvaguardar a reserva de vagas para as pessoas que, por direito, atendam aos critérios estabelecidos. 

Larissa Reis[email protected]

Graduada em jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2021. Vencedora do 13° Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, idealizado pelo Instituto Vladimir Herzog. Também participou de reportagem premiada pela CDL/BH em 2022.

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