Um corpo estirado na rua Sapucaí lotada de jovens bebendo e alheios à cena. Como entender?

Rua Sapucai Cheia
Aglomeração ao lado do local do acidente. (Maira Monteiro/BHAZ)

Sábado, dia 11 de setembro, cerca de 21h. Prestes a encerrar um plantão na redação do BHAZ chega a informação de uma pessoa morta na rua Sapucaí, no bairro Floresta. Primeiro relato: a vítima caiu da conhecida mureta do point. A sede do portal fica a poucos minutos do endereço, então decido passar por lá para tentar entender o que aconteceu. A cobertura rende uma nota e esta reflexão de uma jornalista impressionada com as cenas que presenciou.

O Mirante da Rua Sapucaí virou uma atração para os belo-horizontinos entre 2017 e 2018. Da mureta é possível contemplar uma vista linda dos prédios com painéis artísticos do CURA (Circuito Urbano de Arte). Também beber bons drinks e experimentar deliciosos pratos em restaurantes e bares descolados. Agora, nesse período que muitos já tratam quase como uma pós-pandemia (mas não é), o endereço fica lotado de pessoas nas noites de sexta-feira e sábado, principalmente. Falta espaço na rua, dependendo do horário em que se tenta transitar.

Mar de pessoas com rostos livres

E esse era o cenário quando cheguei para cobrir a notícia trágica. De longe, vejo viaturas da Guarda Municipal com fitas que isolam uma parte da mureta. Para chegar até lá, tenho que “enfrentar” um mar de gente sem máscara. Para quem já ficou internada com Covid-19, a aflição é grande, mesmo após duas doses de Pfizer.

Recentemente, me aventurei a ir a restaurantes com amigos mais próximos, confesso. A falta de convívio social também me fez mal nesse último ano. Mas estou longe de conseguir me sentir confortável rodeada de centenas de pessoas que não conheço, em pé na rua bebendo, “relando”, conversando alto e sem nenhuma proteção. Respiro fundo, com uma dose de desânimo. Penso, logo em seguida, que talvez não deva respirar tão fundo ali, mesmo de máscara. Sigo em frente com cabeça baixa em direção às viaturas.

Chego no local, quase na esquina com rua Tabaiares. Alguns grupos de jovens estão parados bem ao lado das viaturas. Vejo que também tem uma movimentação na parte debaixo da mureta. Aproximo e olho… o corpo ainda está lá, coberto por uma lona preta, rabecão parado bem ao lado. Na parte de cima, tudo parece normal: música alta, risadas, latas de cerveja, aglomerações, rostos livres. A existência de um cadáver naquele local é praticamente ignorada.

Penso: “Se não fosse a presença de um corpo e quatro viaturas, diria que esta é apenas mais uma noite na Sapucaí. Vou gravar um vídeo, não estou acreditando que continuam a beber como se nada tivesse acontecido”.

Não tenho muito tempo para agir. Logo um guarda municipal se aproxima e me apresento como jornalista. Faço as perguntas básicas para entender o que aconteceu. Em resumo, um senhor desacompanhado caiu da mureta e ainda não existem informações concretas sobre as circunstâncias da queda.

Tiro fotos e tomo uma pancada nas costas. Trombadas em aglomerações… normal, né!? Só quero ir embora. Até esqueço do vídeo.

Sapucai Mureta
Samu chegou ao local logo após a queda. (Reprodução/BHTrans)

Indiferença diante da morte

Dá tempo do guarda ainda comentar que clientes de um restaurante tentaram socorrer a vítima. Eles foram embora após o Samu confirmar a morte. Ficaram abalados. Ali eu já estava esgotada, entendia bem o sentimento deles. Nunca é fácil cobrir uma morte, ver um corpo estirado e escrever sobre o fim de uma vida. Exausta, sentindo o forte cheiro de urina típico de aglomerações nas ruas, começo a refletir sobre o fato de que, para ir embora, enfrentaria aquele mar de gente – composto por uma maioria esmagadora de jovens, na casa dos 20 – ainda festejando.

Com ajuda de uma colega, a nota sobre a morte entra no ar no BHAZ. No último parágrafo descrevemos as aglomerações que continuaram mesmo com a morte. Chego na redação e me penitencio: “Deveria ter falado mais sobre aquelas pessoas bebendo, rindo, conversando, aglomerando, a metros de um corpo estirado. Era para ter gravado um vídeo”. Para mim, uma cena quase distópica. As pessoas realmente estão tão indiferentes à morte?

Recorro ao Twitter para acalmar as reflexões, apesar de temer que essa não seja uma boa ideia. Encontro comentários de pessoas que, de alguma forma, compartilham comigo a mesma sensação.

Uma conversa com psicanalista

Domingo, ainda de madrugada, começo a escrever este texto. Quero entender o que vi na rua Sapucaí e, de manhã, converso com uma fonte. Conto o que vi e o psicanalista e escritor Eduardo Lucas Andrade analisa: “É compreensível que cada pessoa reaja de um jeito, conforme a sua história, conforme a forma que leva a reflexão da vida e da morte, o respeito ao outro. Então é esperado que cada um reaja conforme seus sentimentos à vida humana”.

O psicanalista pontua sobre a individualidade das pessoas que presenciaram o fato. “Isso vai pesar para cada um de um jeito. Para alguns com movimento de massa, onde, talvez no outro dia, acordando fora do efeito de massa, caíam na real e fiquem reflexivos ou até mesmo arrependidos. Para outros atravessará com estranhamento e com mal estar. Em alguns tocará na questão do respeito… e aí pessoas, como você relatou, foram embora ao saberem da morte, se sentiram mal e não quiseram ficar. Penso que também tiveram aquelas que foram friamente indiferentes”, diz Eduardo Andrade.

Essa indiferença não está restrita apenas à cena na rua Sapucaí, avalia o psicanalista. “Isso traz à tona reflexões acerca da forma como temos lidado com a vida e com a morte em meio à pandemia e nossas rotinas. Muitos estão com visão negacionista, o que é preocupante. O que é hoje o humano? Esse negacionismo nega primeiro a vida e já está escancarado nos rostos que não usam máscara, nas vozes que bravejam contra a vacina… e daí a tendência é exatamente esta: a indiferença daqueles que ficam perto de um corpo estirado. Os indiferentes ao outro, indiferente ao respeito”, analisa.

“Essa visceral e lamentável cena aponta sintomas de um país que, mesmo diante de quase 600 mil mortes, ainda é formado por muitos que acham que isso não é nada. E quando tratamos a vida humana como nada, as coisas ficam reduzidas a um lugar mortífero. Carecemos muito ainda de falarmos da vida, da morte, das relações e não sermos apenas automáticos no viver. A morte existe, sim. Existe e carece de ser simbolizada, de ser acolhida como efeito de se pensar a vida. Não é só negar e seguir, pois quando o outro é nada, nada somos também e isso tem consequências. Ou problematizamos esses pontos ou sofreremos os problemas deles morrendo como humanos em nós mesmos”, conclui o psicanalista.

Maira Monteiro[email protected]

Diretora-executiva do BHAZ desde junho de 2018. Jornalista graduada pela PUC Minas, acumula mais de 15 anos de experiência em redações de veículos de imprensa, como Record TV e jornal Hoje em Dia, e em agências de comunicação com atuação em marketing digital, como na BCW Brasil.

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