[Bhaz em série] Cigarros paraguaios inundam o Centro de BH – parte 1

Cigarros são comercializados livremente no centro de BH

Por Heraldo Leite – Especial para Bhaz

Nos últimos anos o bordão de vendas apregoado por ambulantes no hipercentro de Belo Horizonte ganhou força. Mas o preço mais atraente – um maço de cigarros paraguaios sai por R$ 3, contra R$ 5,25 das marcas brasileiras mais populares – também tem seduzido comerciantes formais que não se inibem em vender o produto notoriamente contrabandeado. “O lucro com os cigarros da Souza Cruz não passa de 4%”, justifica o dono de uma mercearia na região Oeste da Capital que, simplesmente, parou de vender cigarros considerados ‘oficiais’.

O comércio formal já aderiu às marcas paraguaias e em muitos estabelecimentos já é possível ver o maço do paraguaio San Marino ao lado dos brasileiros Derby, Hollywood e Marlboro nos modernos displays das gigantes Souza Cruz e Philip Morris. Bancas de jornal que vendem cigarros a varejo – mais conhecido como ‘picado’ – também exibem sem receio o San Marino, além de outras marcas paraguaias.

Na região Oeste da capital, o comerciante (que pediu para não ser identificado), conta que compra uma caixa contendo 50 pacotes – cada pacote contendo dez maços – por algo em torno de R$ 700 a R$ 800. Ou seja, cada maço pode sair entre R$ 1,40 a R$ 1,60. Vendido a R$ 3,50, o lucro salta para mais de 100%. O que estimula as promoções: quem compra três maços desembolsa R$ 10, garantindo praticamente a mesma lucratividade à contabilidade de mercearia.

A variação no preço das caixas, explica o comerciante, fica por conta dos riscos inerentes ao negócio. “Quando eles prendem as carretas que vêm do Paraguai, o produto some e o preço aumenta”, justifica sem revelar de quem compra. “Ele vem aqui, mas não sei de quem ele compra ou como traz para cá”, revela, um tanto arredio.

Preocupado com a concorrência desleal, o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) apresenta números que mostram que, em todo o Brasil, praticamente a metade – 48% – dos cigarros consumidos no Brasil provêm do vizinho Paraguai. O que significa, em termos de arrecadação, que mais de R$ 9 bilhões sejam sonegados.

Em Minas, a percentagem pode ser maior, mas tanto a Receita Federal quanto a Polícia Civil não calculam, especificamente, a invasão de cigarros ‘Made in Paraguay’. Segundo a Superintendência Regional da Receita Federal do Brasil da 6ª Região Fiscal, 66,6% das apreensões de mercadorias somente em Belo Horizonte referem a “Produtos das indústrias alimentares; bebidas, líquidos alcoólicos e vinagres; fumo (tabaco) e seus sucedíneos manufaturados”. Em todo o ano de 2017, as apreensões somaram R$ 40,2 milhões. E, até março deste ano, o valor é de R$ 6,8 milhões.

Já de acordo com a Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sesp), foram registrados, em Minas 61 casos de “contrabando ou descaminho” ao longo do ano passado. Até março de 2018, foram nove. Por e-mail, a secretaria divulgou que “não há como atender à demanda em relação especificamente a cigarro contrabandeado, pois a maioria dos materiais registrados se encontra em histórico, o que não permite sua contabilização.”

Responsável pela primeira abordagem de caminhões e cargas suspeitas, a Polícia Militares informa que em 2017 foram registradas 194 apreensões de cargas de cigarro e que até março deste ano já foram 51. Por razões geográficas e logísticas, as regiões do Triângulo Mineiro e o entorno de Divinópolis sobressaem-se com o maior de flagrantes.

Frequentemente, polícia apreende carregamentos de cigarros; apreensões não conseguem conter o contrabando (Polícia Federal/divulgação)

Pequeno caixote de madeira garante a venda

Mesmo com tanta repressão e a concorrência do comércio estabelecido, os ambulantes já desenvolveram suas estratégias para continuar vendendo os maços azul e branco do San Marino. Basta um pequeno caixote de madeira com um tampo maior apoiado em duas pernas feito com a madeira do mesmo caixote para vender o produto e, não raro, pacotes com dez maços. Assim, quando a fiscalização surge, basta desmontar o balcão improvisado, colocar a mercadoria em sacolas e sumir de circulação.

Outra estratégia dos camelôs é chegar bem cedo nas proximidades das estações Central e Lagoinha do Metrô. Entre 5h30 e 6h30, são milhares de trabalhadores que as composições do trem metropolitano despejam ali e ganham as avenidas Paraná, Santos Dumont e Afonso Pena (nas imediações da Praça da Rodoviária). Gente simples que acorda cedo e tem de pegar outra condução até o trabalho são o público-alvo dos cigarros “made in Paraguay”. Nas primeiras horas do dia, além dos consumidores potenciais, a fiscalização, principalmente da Prefeitura, ainda não iniciou seu expediente.

O camelô que coloca sua banca de cigarros nas esquinas do hipercentro de Belo Horizonte não tem a dimensão dos números gigantescos e da intrincada logística que faz com que um pacote saia de Ciudad del Este e desembarque na capital mineira dias depois. A sofisticação é tanta que o próprio contrabando cuidou de fatiar o mercado, facilitando o abastecimento e evitando atritos entre atravessadores, fornecedores e verdadeiras quadrilhas.

Enquanto a marca San Marino prolifera em Minas, na capital paulista a marca mais  disseminada é a Eight – aliás a mais vendida hoje no Brasil, de acordo com o próprio Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) com base em pequisa do Ibope. A marca paraguaia abocanha 12,6% enquanto o brasileiríssimo Minister fica com 11,8% na preferência dos tabagistas. Já no Rio de Janeiro, a invasão paraguaia se dá por conta da marca Gift, que por sua vez responde por 10,2% dos produtos. Brasília, por sua vez, foi invadida pela marca Euro.

Ou seja, entre as três marcas mais vendidas em todo o território brasileiro, duas vieram do Paraguai. Campeoníssimo em vendas na capital mineira, o San Marino figura apenas como o décimo no ranking nacional, com 3,9% em vendas.

Invasão preocupa médicos

A invasão de cigarros oriundos do Paraguai – situação em que praticamente metade do tabaco fumado no Brasil vem daquele país vizinho – não preocupa somente autoridades, especialistas e fabricantes brasileiros. Chile e Argentina também sofrem com a mesma invasão e seus reflexos fiscais e comerciais. Em torno de 22% dos cigarros consumidos no Chile são frutos do contrabando, enquanto na Argentina já são 14%.

A sonegação em terras portenhas já é estimada em 6 milhões de dólares. “Somado com o comércio ilegal de armas, munição e produtos eletrônicos o dinheiro é suficiente para construir mais 30% de hospitais e 40% a mais em vagas de trabalho”, ilustra o vice-presidente da Associação Civil Antipirataria Argentina, Sergio Piris.

Em comum com os três países está a questão tributária. Segundo números apresentados pelo presidente do Instituto ETCO e da Frente Nacional Contra a Privataria (FNCP), Edson Vismona. “No Brasil, nos últimos seis anos, o aumento da tributação foi de 140% ante uma inflação acumulada de 44%” Assim, ele vê uma relação direta entre o aumento de impostos e a invasão de cigarros contrabandeados.

No Brasil a taxação média é de 70%, o que depende da incidência do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias) que varia de Estado para Estado. Em contrapartida, no Paraguai as taxas giram em torno dos 16%.

Além dos impostos mais baixos, paraguaios trabalham com um gigantesco excedente na produção. O país tem hoje mais de 35 fabricantes de cigarros. Sua capacidade de produção é de 100 bilhões de unidades, mas a fabricação é de 60 bilhões, enquanto os paraguaios consomem 2,5 bilhões de cigarros por ano. Ou sejam 57,5 bilhões de cigarros atravessam fronteiras, principalmente a chamada Tríplice Fronteira, em Foz do Iguaçu, no Oeste do Paraná, onde o Brasil tem limites com Argentina e Paraguai.

Para delegado Fabiano Bordignon, barateamento do cigarro brasileiro, com redução de impostos, irá inviabilizar o contrabando (Heraldo Leite/Bhaz)

Delegado da PF defende redução de impostos

Envolvido diretamente no combate ao contrabando, o delegado regional da Polícia Federal em Foz do Iguaçu, Fabiano Bordignon, sugere que o Governo reduza os impostos, fazendo com que um maço de cigarros brasileiros caia para o patamar de R$ 3. “É só baixar o preço das marcas mais populares e o contrabando será golpeado”, garante o delegado.

Bordignon fez um paralelo com a Lei de Informática que em 2014 reduziu uma série de tributos fazendo com que o preço dos computadores diminuísse inviabilizando o chamado mercado negro. Para se ter uma ideia, em 2004 em cada dez computadores, sete eram contrabandeados. Atualmente, 10% são contrabandeados.

Mas, alheio às questões tributárias, alfandegárias e até diplomáticas, o Paraguai segue fabricando seus cigarros. Uma das maiores fabricantes, a Tabesa (sigla para Tabacaria Del Este S.A) opera em Hernandiáceas e Ciudad Del Este, a um atravessar de ponte de Foz do Iguaçu, basta cruzar os 552 metros da famosa Puente Internacional de la Amistad (Ponte da Amizade, sobre o Rio Paraná). Detalhe: seu principal acionista é Horácio Cartes, nada menos do que o atual presidente da Republica del Paraguay. Conhecido como “El rey del tabaco” Cartes será sucedido por Mario Abdo Benítez, eleito em abril e cuja posse está prevista para 15 de agosto.

Além das cifras, volumes e burocracias alfandegárias outra preocupação é com a qualidade dos cigarros paraguaios, que já abocanham quase a metade do mercado de Belo Horizonte e incomodam as multinacionais do tabaco. Embora não se possa garantir cigarro menos nocivo à saúde, o médico pneumologista Luiz Fernando Pereira é taxativo: “No fundo tudo é a mesma porcaria. Mas é claro que fabriquetas de fundo de quintal vão ter produtos com urina e asas de baratas. Tem de tudo”.

O Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO) divulga que 65% das marcas paraguaias contrabandeadas possuem 11 vezes mais chumbo que os parâmetros definidos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Estas marcas também descumprem uma série de normas sanitárias da agência.

Com a experiência de 34 anos na área de pneumologia, Luiz Fernando pondera que a indústria trabalha com uma certa padronização, com doses sistematizadas de alcatrão e nicotina o que não dá para garantir nos produtos contrabandeados. “Eles podem ter outras substâncias que trarão outros malefícios além dos provenientes do tabagismo”, adverte.

Atendendo no Biocor e no Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte, o pneumologista sustenta que fumar é um hábito que seduz cada vez menos pessoas. “Hoje são 10% dos fumantes, quando este índice já foi de 34% da população brasileira”, informa.

No entanto, o médico adverte para um novo modelo de cigarro, de tabaco aquecido, que ainda não existe no Brasil. Segundo ele, o produto é fabricado sob a garantia que a baixa temperatura utilizada no processo de fabricação teria de 90% a 95% menos substâncias nocivas à saúde. “Isto quer dizer vamos fumar, pois só tem 5%? Não é bem assim. Tem menos substâncias? É fato. Pode causar menos mal à saúde. Provavelmente, mas ainda não temos estudos de longo prazo”, alerta.

(*) O contrabando e o comércio ilegal, especialmente de cigarros, foram os temas do seminário “A ameaça transnacional do crime organizado no Cone Sul”, realizado em Foz do Iguaçu (PR), que reuniu especialistas, autoridades em comércio internacional e jornalistas do Brasil, Argentina, Chile e Paraguai. O evento foi uma parceria entre o instituto ETCO e o Enecob (Encontro Nacional de Editores, Colunistas, Repórteres e Blogueiros). O repórter viajou a convite do evento.

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