Cartilha pede para folião não se vestir de mulher e nem usar peruca black power no Carnaval de BH

Carnaval Belo Horizonte
Carnaval 2020 deve reunir cerca de om estimativa de receber 4, 5 milhões de foliões (IMAGEM ILUSTRATIVA – Amanda Dias/BHAZ)

“Fazer piada da história e sofrimento de alguém não tem a menor graça, não é mesmo?”. É assim que a PBH (Prefeitura de Belo Horizonte) sugere uma reflexão aos foliões que vão aproveitar o Carnaval na capital mineira. O uso de fantasias que desrespeitam grupos da sociedade e a entoação de marchinhas com conteúdos machistas, por exemplo, devem ser evitados.

O documento foi publicado nessa quinta-feira (13), no DOM (Diário Oficial do Município) e ressalta a necessidade de manter o respeito com as minorias que têm, frequentemente, seus direitos violados. No texto, a PBH cita os povos indígenas, os ciganos, os fiéis de religiões de matrizes africanas, a população LGBTQI e as mulheres.

Além do machismo, as marchinhas também não devem reproduzir discursos que perpetuam o racismo velado. “Teu Cabelo não nega”, “Mulata Bossa Nova” e “Nega Maluca”, segundo a PBH, “são exemplos de músicas que materializam o imaginário social pejorativo em estereótipos como o da mulata (animal estéril nascido do cruzamento de burro com égua)”.

Amanda Dias/BHAZ

A cartilha vai funcionar?

O BHAZ conversou com estudiosos para saber se o documento terá o efeito prático desejado. Para a socióloga e professora da PUC Minas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais), Andreia Santos, apesar do Carnaval ser uma festa que, historicamente, tem ligação com o corpo, o respeito precisa ser mantido. Por isso, ela é simpática ao projeto da PBH.

“O Carnaval sempre foi a festa da celebração do corpo, mas precisamos lembrar que não se pode ultrapassar o limite do respeito. Vivemos um momento em que é preciso reforçar as políticas de inclusão, que favoreçam o direito de todos, ao contrário do discurso do governo federal”, diz Andreia.

Para a professora do Departamento de Sociologia da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Ana Lúcia Modesto, é “muito difícil” que os foliões sigam à risca o pedido do poder público. “Está enraizado na cabeça das pessoas de que isso [fantasias depreciativas] é tradição cultural. Para mudar, é preciso lutar contra a forma que a cultura foi construída e combater os preconceitos seculares”, explica.

A especialista concorda com a importância da iniciativa da prefeitura, porém, salienta que regras são difíceis de serem cumpridas em uma festa onde há “a explosão de emoções”.

Blackpower e Trans-fake

Entre as fantasias que devem ser evitadas estão as perucas black power e o uso de roupas femininas por homens. “O uso de perucas ‘black power’, ‘nega maluca’, ‘dreadlocks’, ‘touca com tranças’ entre outras representativas das culturas africanas têm sido prática corriqueira e desagradável”, informa o documento. A justificativa é simples: elas traduzem um desrespeito aos símbolos da resistência negra.

“O humor pejorativo afeta as mulheres, os povos indígenas e a população LGBTQI. A PBH quer propor ao folião o cuidado e respeito com o sentimento do outro. Se padecer pelo outro, por conta do sentimento de negação que ele enfrenta, é uma forma de diminuir o preconceito sofrido por ele”, alerta Andreia.

Homens vestidos de mulher?

Ver homens fantasiados de mulher é algo comum no Carnaval, mas a socióloga Andreia dos Santos mostra que, na verdade, a fantasia não passa de um desrespeito.

“Os foliões que se vestem de mulher não as representam, mas sim querem expor as prostitutas e as colocam em situação delicada. Nem toda a mulher, que tem uma liberação sexual, age como prostituta e se agir, o respeito com ela tem que ser mantido”, detalha a especialista.

Opiniões divididas

Nas redes sociais, a orientação do Executivo municipal divide os internautas. “Que preguiça total. Povo enlouqueceu. Querem proibir fantasias, marchinhas de Carnaval. Insanidade”, diz um rapaz contrário à proposta. “Inacreditável essa cartilha. Quanta besteira. Eram só brincadeiras de Carnaval e foram transformadas em insultos. Pelo amor de Deus”, apontou outro.

Por outro lado há quem defenda as recomendações. “Parabéns por essa cartilha criticando as fantasias racistas e preconceituosas no Carnaval de BH”,escreveu um internauta. “Chocada que tem gente achando ruim que em BH tem uma cartilha de conscientização sobre o uso de fantasias de Carnaval que não incitem racismo, machismo e LGBTfobia”, postou outro.

Orientações

Veja as orientações passadas aos foliões na capital mineira:

  • “O teu cabelo não nega, mulata. Porque és mulata na cor” – Chega de Assédio:

As marchinhas são tradição, porém, algumas perpetuam o racismo velado em expressões de bestialização e hiper sexualização do corpo negro. “Teu Cabelo não nega”, “Mulata Bossa Nova” e “Negra Maluca” materializam o imaginário social pejorativo em estereótipos como o da mulata (animal estéril nascido do cruzamento de burro com égua) e do negão do pau grande (King Kong). Fantasiar-se de mulher negra empregada doméstica ou enfermeira sexy é conceber a mulher negra como objeto sexual. Basta! Basta de assédio a todas mulheres! Basta de assédio e hipersexualização da mulher negra!

  • Blackface não é fantasia!

Blackface é técnica teatral usada para pintar pessoas brancas de negras de maneira caricata. Destacou-se no filme “O Nascimento de uma Nação”, o qual contribuiu no ressurgimento da Klu Klux Klan nos EUA. Os protagonistas brancos interpretavam negros como pouco inteligentes e sexualmente agressivos. Isso culminou em práticas reais de linchamento e adoção da Lei de Segregação Racial. O blackface carrega a simbologia do apartheid; e no Brasil não deve ser confundido com homenagem.

  • Nosso cabelo e nossos símbolos sagrados não são adereço de Carnaval:

O uso de perucas “blackpower”, “nega maluca”, “dreadlocks”, “touca com tranças” entre outras representativas das culturas africanas tem sido prática corriqueira e desagradável. Traduzem-se como desrespeito aos símbolos da resistência negra às formas padronizadas de beleza e outras imposições aos corpos negros. Outra bola fora é usar roupas próprias das religiões de matriz africana ou de orixás, como Iemanjá, de forma descontextualizada. Exigimos respeito à nossa cultura e ao que nos é sagrado.

As vestimentas e ornamentos indígenas compõem sua tradição e, por usá-las, indígenas são frequentemente violentad@s: ônibus não param, estabelecimentos impedem sua entrada, sofrem deboche, e têm que lidar ainda com atrocidades às suas terras, águas, bichos e plantas. Em muitas culturas o cocar é sagrado e próprio para ritos especiais. Usar objeto sagrado de maneira recreativa é reduzir a cultura indígena ao exótico; trata-se mais de um sinal de poder e dominação e não de homenagem. Não passe vergonha ao usar cocar pra curtir o bloco enquanto a população indígena é vítima de genocídio!

  • Cigano é legal só no carnaval?

Você conhece a cultura dos povos ciganos? Provavelmente muitas pessoas responderão que não. O desconhecimento é um dos fatores da marginalização dos povos ciganos, os quais lutam cotidianamente para ser tratados com dignidade. Ser maltratad@ na rua, lojas, bancos e serviços públicos é algo constante em seu cotidiano. A maioria das pessoas se mantém indiferente e até favorável a tais situações. A gozação com o uso bandana, lantejoulas douradas e outros elementos associados à cultura cigana fortalece estereótipos racistas.

  • “Trans-fake” – Homem vestido de mulher

Homens vestidos de mulher (e até mesmo de noiva) estão por todas as cidades do país no Carnaval. Mas o que está errado? Além de ser machista e desrespeitoso com as mulheres, uma vez que representa-se a imagem feminina sempre de maneira descompromissada e jocosa. Essa “moda” é preconceituosa contra as pessoas trans e apenas reforça os estereótipos de gênero e relações de poder. E se ao contrário de se vestir como essas pessoas, você começar a se colocar no lugar delas, reconhecer seus direitos e contribuir com suas lutas?

  • Respeito à população LGBTQI negra:

A população negra LGBTQI convive e luta contra várias formas de preconceito e segregação. Até hoje mulheres e homens negros em sua diversidade de gênero e orientação sexual convivem com o medo de sofrer o estupro dito “corretivo” muito recorrente na época de carnaval. Sendo assim, respeitar os direitos da população negra LGBTQI vai ao encontro da importante percepção desse povo como cidadãos que tem suas contribuições na sociedade. Toda forma de desrespeito e depreciação vai contra princípios dos direitos regidos pela Constituição e pelo Estatuto da Igualdade Racial.

  • Criminalização e Violência: não ao higienismo e sim ao direito à vida!

A cultura e estética de origem negra e periférica é alvo constante de olhares depreciativos e ações de controle por parte da sociedade e do Estado. No carnaval é possível e urgente não se omitir diante de violências sofridas por jovens negros e pobres que tentam ter o direito de circular pela cidade. Nos casos de violência institucional e abordagens truculentas pelas forças policiais, você tem o poder de acionar a ouvidoria e relatar a situação indicando dia, hora e local do ocorrido (a identificação do agente da violência também é importante).

Jovens negros vistos como indesejáveis em espaços historicamente ocupados por brancos são condenados ao estigma de suspeitos e perigosos, tornando-se alvo da criminalização e controle de seus corpos. Embora o Estatuto da Juventude preconize que todos os jovens são sujeitos de direitos, estamos ainda numa realidade de valorização exacerbada do patrimônio em detrimento da vida. O Brasil é um dos países com maior número de homicídios de jovens negros, o que se traduz como genocídio da juventude negra e pobre. A superação dessa terrível e inaceitável realidade é de sua responsabilidade também!

Vitor Fórneas[email protected]

Repórter do BHAZ de maio de 2017 a dezembro de 2021. Jornalista graduado pelo UniBH (Centro Universitário de Belo Horizonte) e com atuação focada nas editorias de Cidades e Política. Teve reportagens agraciadas nos prêmios CDL (2018, 2019 e 2020), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).

SIGA O BHAZ NO INSTAGRAM!

O BHAZ está com uma conta nova no Instagram.

Vem seguir a gente e saber tudo o que rola em BH!