Autoridades cobram, a 6 dias do Carnaval, exigência impossível de ser cumprida em Minas

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Bloco do Juventude Bronzeada em 2019; tradicional cortejo foi cancelado (Vitor Fernandes/BHAZ)

A exigência cobrada de fornecedores de trios elétricos do Carnaval de BH, pelas autoridades, é impossível de ser cumprida em Minas Gerais. O Estado mineiro não possui uma empresa sequer apta pelo Denatran (Departamento Nacional de Trânsito) a conceder a modificação formal exigida pelas polícias de forma repentina no último domingo (16), a seis dias do início tradicional do Carnaval.

Mesmo com reuniões periódicas desde agosto do ano passado com forças de segurança e diversos entes do poder público, os blocos foram surpreendidos no início desta semana com uma exigência formal – jamais pedida antes na história da folia de BH. Nesta sexta (21), no último dia útil antes do começo tradicional do Carnaval, o Detran-MG (Departamento de Trânsito de Minas Gerais) anunciou uma força-tarefa – mas uma força-tarefa inútil, como admite o próprio departamento.

Entenda o impasse criado repentinamente.

Segurança

Os trios elétricos que desfilam no Carnaval de BH precisam passar por uma série de aferições e fiscalizações:

  • apresentar um certificado de segurança concedido por uma empresa licenciada pelo Denatran e credenciada pelo Inmetro, com a aferição de um engenheiro mecânico e seguindo os termos do Contran (Conselho Nacional de Trânsito)
  • o certificado deve atestar todos os componentes automotivos do veículo adaptado para trio, em especial: “motor, embreagem, transmissão, direção, freios, chassi, carroceria, sistemas elétricos, sistema de arrefecimento, sistema de distribuição e sistemas de segurança ativa e passiva e a capacidade máxima de passageiros no veículo, incluindo a tripulação”
  • apresentar Laudo de Inspeção Técnica (LIT) para atestar os itens citados anteriormente, além de conferir a segurança de sistemas de controles elétricos e/ou eletrônicos montados e/ou acoplados ao veículo

Esses itens resumidos (que podem ser conferidos na íntegra aqui) devem ser atestados por uma empresa licenciada pelo Denatran. Além disso, o Corpo de Bombeiros de Minas Gerais criou uma Instrução Técnica em 2018 especialmente para garantir a segurança do Carnaval (que pode ser conferida na íntegra aqui).

Entre as diversas obrigações dos militares, está “garantir que os trios elétricos, veículos de apoio e similares ofereçam as condições mínimas de segurança contra incêndio e pânico, por meio de regularização junto aos órgãos de trânsito”. Procurada pelo BHAZ, a assessoria do Corpo de Bombeiros reforçou que é feita a análise da “existência de medidas protetivas e de segurança, além da conferência do trajeto a ser percorrido”.

Por que os trios de BH não passaram por esses processos?

Eles passaram, todos os veículos passaram por todos esses processos e apresentaram as documentações exigidas. Abaixo, são reproduzidos o laudo atestando a segurança de um dos trios apreendidos pela polícia mineira e a licença concedida pelo Denatran à empresa responsável pelo laudo.

Laudo de um dos trios apreendidos com todos os dispositivos de segurança aprovados por empresa licenciada pelo Denatran (Reprodução)
Portaria do Denatran que confirma o licenciamento da empresa que realizou o laudo da imagem acima – CNPJ comprova se tratar de uma mesma empresa (Reprodução)

A pedido do BHAZ, o Denatran enviou a lista de todas as empresas do Brasil credenciadas pelo órgão como Instituição Técnica Licenciada, ou ITL. A empresa acima – Roberto Carlos Alves Parreira – ME -, que aferiu a segurança de trios apreendidos pela PM, está entre as habilitadas (confira a lista completa aqui).

O que, então, está sendo exigido?

As autoridades decidiram exigir, no último domingo (16), que os fornecedores desses trios fornecessem ao Detran-MG uma cópia do CAT (Certificado de Adequação à Legislação de Trânsito) que não existe em Minas Gerais.

Explicando melhor: empresas que fazem modificações em veículos solicitam e recebem um CAT do Denatran. Existem 34 tipos de certificados diferentes, cada um para a especialidade do serviço, como, por exemplo, transformar um veículo tradicional em foodtruck.

O coordenador-geral de Apoio Técnico e Fiscalização do Denatran, Luis Pazetti, explica ao BHAZ que, caso uma empresa transformadora já tenha recebido um CAT para uma determinada modificação, não precisa fazer nova solicitação ao departamento nacional.

“A empresa manda um projeto, que é analisado pelo Denatran. Se ela, por exemplo, solicitou que um caminhão modelo Ford fosse transformado em um determinado trio elétrico e teve o CAT concedido, ela não precisa pedir novo CAT para fazer transformação idêntica: do mesmo modelo Ford para o mesmo projeto de trio”, explica Pazetti.

No entanto, segundo o próprio Denatran, não há registro recente de nenhum pedido de CAT para transformação em trio elétrico, o que eliminaria qualquer chance dos blocos de BH cumprirem a exigência repentina feita pelas autoridades mineiras.

“É impossível, pela nossa realidade, que um CAT seja emitido em menos de um mês. Temos uma ordem de protocolo e essa ordem só é afastada por ordem judicial. Não existe essa de alguém que seja amigo de alguém e tenha preferência”, afirma o diretor-geral.

“Detran-MG está exigindo algo que ele mesmo não consegue cumprir. Não tem empresa em Minas que fornece o documento, não há empresa homologada em Minas. A gente tem os laudos de segurança, mas falta essa questão formal”, afirma ao BHAZ Laura Diniz, advogada que representa blocos prejudicados pela mudança repetina.

“O problema não é bem esse [necessidade de força-tarefa]”, admite o delegado da Divisão de Registro de Veículos do Detran-MG, Rafael Faria. “É o grande entrave que o Detran-MG se encontra: nossa atribuição é registrar o veículo, não somos nós que creditamos esses organismos. Quem diz que está seguro, primeiro, é a empresa e no segundo momento é uma ITL, uma Instituição Técnica Licenciada pelo Denatran pra dizer que aquele veículo está seguro”.

Como mostrado acima, a empresa que aferiu a segurança de trios apreendidos pela polícia é uma ITL.

Burocracia

O Detran-MG reforça que as empresas aptas a fazer esse processo exigido de última hora são homologadas apenas pelo Denatran. Ao mesmo tempo, afirma que não pode considerar todos os laudos já apresentados pelos fornecedores de trios, mesmo os feitos por empresas licenciadas pelo mesmo Denatran.

“Não é meramente formal porque é uma situação que exige do Detran-MG. Detran-MG é proibido por lei de dar início ao processo sem esse documento. Porque esse documento é o que fiscaliza quem fez esse veículo e que tipo de transformação foi feita”, explica Faria ao BHAZ.

“Todo o processo de aferição da segurança dos veículos pelos quais os trios que usamos passaram é idêntico ao exigido pelo Detran-MG. Mas o departamento não reconhece no sistema por causa da ausência do CAT”, afirma Diniz.

“Fizemos todos os processos exigidos pelo poder público há meses. Mesmo entendendo que é um processo meramente formal que foi avisado durante o Carnaval, queremos nos adequar. Mas é simplesmente impossível porque não existe esse tipo de empresa em Minas”, reforça a defensora.

“A legislação prevê o CSV (Certificado de Segurança Veicular), isso que atesta a segurança do veículo. O que eles têm é um laudo técnico, que é diferente porque o CSV é vínculo diretamente no Denatran”, responde o delegado do Detran-MG.

O que ambas as partes concordam é que a força-tarefa anunciada é meramente ilustrativa. A esperança dos blocos é conseguir um mandado de segurança através da Justiça, que foi impetrado nesta sexta.

Polícia em saia justa

A medida repentina, em desacordo com o que foi alinhado em meses de reuniões entre poder público e blocos, deixou até mesmo as forças de segurança em saia justa. Ao dizer, de forma enfática, que toda essa operação para barrar trios que não tivessem CAT era uma preocupação com a segurança dos foliões, o comando da Polícia Militar mineira admitiu que falhou nesse dever em anos anteriores.

“Tem que ser um Carnaval sustentável na tutela do maior patrimônio que temos, que é a vida. E, quando se trata de vida, não se pode flexibilizar. Cabe à PM proteger o cidadão mineiro através da fiscalização”, afirmou o comandante-geral da PM, coronel Giovanne Gomes da Silva. “Quando se fala de vida a gente não negocia”, complementou em coletiva à imprensa realizada na quinta (20) para anunciar que os blocos seriam barrados.

No entanto, a mesma PM não fez esse tipo de fiscalização nos anos anteriores – e esse exato tipo de trio elétrico é usado ao menos desde 2016. Ao ser questionado sobre a teórica falha em 2019, quando já era comandante-geral, Silva justificou ao dizer que “não chegou ao meu conhecimento nenhum fato concreto como chegou neste ano”.

A Polícia Civil também ficou desconfortável ao ser questionada pela ausência da mesma exigência em anos anteriores. “Essa fiscalização de trânsito ocorre pela PM. Não é o Detran que faz essa fiscalização, é a PM. Não podemos responder por isso. Todas as vezes que nossos agentes se deparam, a gente age. Se fez nos anos anteriores, se fez ou não fez, não tem como dar esse tipo de resposta”, afirmou, ao BHAZ, o delegado da Divisão de Registro de Veículos do Detran-MG, Rafael Faria.

Thiago Ricci[email protected]

Editor-executivo do BHAZ desde agosto de 2018, cargo ocupado também entre 2016 e 2017. Jornalista pós-graduado em Jornalismo Investigativo, pela Abraji/ESPM. Editor-chefe do SouBH entre 2017 e 2018; correspondente do jornal O Globo em Minas Gerais, entre 2014 e 2015, durante as eleições presidenciais; com passagens pelos jornais Hoje em Dia e Metro, TVs Record e Band, além da rádio UFMG Educativa, portal Terra e ONG Oficina de Imagens. Teve reportagens agraciadas pelos prêmios CDL, Délio Rocha, Adep-MG e Sindibel.

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