Morador de rua não foi vítima de atentado – ele agonizava de dor com suspeita de Covid-19

Morador de rua
Mesmo agonizando de dor, morador de rua foi ignorado na Praça da Estação (FOTO ILUSTRATIVA: Amanda Dias/BHAZ)

O homem em situação de rua ignorado enquanto agonizava de dor na Praça da Estação não foi queimado na madrugada de terça-feira (9), e sim está com sintomas que levantam suspeita de Covid-19. É o que atestam as autoridades mobilizadas após a repercussão do caso, divulgado inicialmente pelo BHAZ como um atentado. Essa informação equivocada foi publicada após a assessoria do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) inicialmente confirmar a existência de lesões por queimadura no corpo da vítima e uma testemunha, que tomou a iniciativa de acionar o resgate para socorrê-lo, narrar detalhes de relatos que ouviu sobre a suposta agressão.

Antes da publicação dessa informação, forças de segurança também foram acionadas pela reportagem do BHAZ em busca de mais dados sobre o ocorrido, porém informaram que, diante da inexistência de um registro policial, não poderiam esclarecer a denúncia de imediato. A falta de acionamento das polícias ou mesmo dos bombeiros foi confirmada pela autora do pedido de socorro, que ligou diretamente para o Samu ao ver o homem sofrendo na rua para priorizar o atendimento médico.

Após a retificação da informação divulgada inicialmente – com intuito de sanar a desinformação gerada pela publicação -, o BHAZ esclarece aos leitores o que de fato aconteceu com o homem na terça-feira, data de publicação da reportagem. Também detalha a decisão editorial de publicar o relato inicial.

Suspeita de Covid-19

Após a publicação da primeira reportagem, o promotor Francisco Angelo Silva Assis acionou a Polícia Militar para levantar mais informações sobre o suposto atentado. O BHAZ soube da iniciativa ao entrar em contato com a assessoria de imprensa do MPMG (Ministério Público de Minas Gerais) para dar continuidade à apuração do caso, tendo em vista que não é de praxe o órgão atuar no atendimento imediato: essa função é das autoridades procuradas inicialmente (bombeiros, polícias, Samu…). 

“A nossa função é de controle externo da atividade policial, inclusive dos não registros policiais”, explicou Assis. “Ocorreu uma entrevista com a própria vítima, com o técnico de saúde, com gente que atende na assistência social”, contou, ao descartar completamente a possibilidade da vítima ter sido queimada naquela madrugada. “Talvez a confusão que tenha ocorrido foi por conta de relatos de mais dias de agressões em uma suposta tentativa de se colocar fogo. E as pernas do senhor, o doutor João Batista, doutor médico legista muito antigo em BH, relatou que as pessoas em situação de rua, dependendo do tipo de ferida, são muito próximas de queimaduras”, continuou.

“Às vezes, para o olho humano menos experimentado, ele identifica aquilo como queimadura e às vezes não, então pode ter sido isso. Teria acontecido uma tentativa, aproximadamente de dias, com esse senhor, e essa situação dele que demandava um atendimento de saúde realmente, e aí as histórias se comunicaram dessa forma”, esclareceu. “Foi bom para mostrar de um lado que nós conseguimos nos mobilizar de maneira rápida. Felizmente, por um lado, a notícia não era verdade”, concluiu, antes de reforçar que casos de violência contra moradores em situação de rua estão aumentando ultimamente.

No noite de quarta-feira (10), a PM, que horas antes informou não ter sido acionada no atendimento à ocorrência, também esclareceu a atuação no caso ao reforçar o que o promotor havia dito em entrevista. Imediatamente, a reportagem foi editada, com o devido aviso das mudanças feitas logo no início do texto.

Detalhes sobre atendimento médico

Na tarde desta quinta-feira (11), a PBH respondeu a todas as demandas feitas pela reportagem com a descoberta de que não ocorreu atentado recente contra o morador de rua. “No exame clínico foram identificados apenas sinais de queimaduras antigas e observados sintomas respiratórios, sendo assim, o paciente foi atendido conforme os protocolos clínicos”, afirmou em trecho da nota.

A prefeitura ainda afirmou que o Samu só aciona as autoridades policiais “em caso de óbito suspeito ou ameaça permanente a outras vítimas”. “Em outros quadros, o Samu encaminha as vítimas às unidades de referência para atendimento, onde é feito o acionamento das autoridades e o Boletim de Ocorrência”, disse.

O Ministério Público, por sua vez, também informou que a Polícia Civil também foi envolvida, através do Departamento de Investigação de Homicídios e Proteção a Pessoa. “Procurada pela Polícia Civil, a gerente da UPA Centro Sul, Chirley Madureira, informou que, após ser contatada por várias autoridades sobre o caso – que ganhou grande repercussão – ela fez uma minuciosa análise de todas as pessoas que deram entrada na unidade no dia 9 de março e localizou o homem mencionado na notícia”, afirmou.

“Ainda de acordo com ela, o paciente foi identificado com problemas de saúde diversos e suspeita de Covid-19, razão pela qual foi transferido no mesmo dia, por volta de 23h, para o Hospital Metropolitano do Barreiro. Para a gerente da UPA, o equívoco da reportagem pode ter sido provocado pelo fato de que os pertences da vítima, como cobertores e roupas, apresentavam-se queimados”, informou.

O CEDDH MG (Centro Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da População de Rua) foi procurado pela reportagem também durante o processo de correção da informação divulgada inicialmente. Representantes do órgão não quiseram dar entrevista.

Primeiras apurações

O BHAZ tem como uma das principais sustentações da linha editorial dar a devida importância para toda a população da capital mineira – especialmente se historicamente há um abandono da sociedade, do poder público e da própria imprensa. Um morador de rua agonizando de dor na Praça da Estação e socorrido pelo Samu com queimaduras – segundo a confirmação inicial da própria assessoria do serviço de socorro – é notícia. 

O trabalho de apuração deste caso começou quando a equipe do BHAZ identificou, por volta das 11h de terça-feira (9), uma publicação no Instagram. O texto dizia que um idoso em situação de rua tinha sido vítima de um atentado. “Passei na Praça da Estação há pouco. Colocaram fogo num senhor de seus 70 anos que está em situação de rua. Jogaram gasolina e queimaram ele dormindo, as pernas estavam na carne viva”, afirmava trecho do story.

mensagem morador de rua queimado
Mensagem publicada no Instagram (Reprodução)

Imediatamente, a reportagem do portal procurou a autora das publicações e acionou as autoridades: Samu, Polícia Militar, Corpo de Bombeiros e Polícia Civil. A assessoria de imprensa dos bombeiros afirmou que não teve nenhum acionamento nesse sentido, enquanto a comunicação da Polícia Civil também negou ter tido qualquer registro policial com as características descritas.

A assessoria de imprensa da Secretaria Municipal de Saúde, responsável pela comunicação do Samu, pediu para que a demanda fosse enviada por email. Por fim, a reportagem não teve sucesso imediato ao tentar contato por meio dos canais telefônicos da Polícia Militar.

Testemunha

Enquanto a reportagem aguardava o retorno do Samu, a apuração avançou com uma longa entrevista com a autora dos stories. Relatos fortes, ricos em detalhes feitos por uma pessoa idônea. Uma testemunha que se sensibilizou ao ver o homem com lesões no corpo, deitado na praça e agonizando. Enquanto pedia socorro, ouviu os companheiros da vítima contando sobre as agressões supostamente sofridas.

Diante de uma denúncia tão séria e da dificuldade em localizar registros policiais, a equipe tentou pela primeira vez entrar em contato, sem sucesso, com a Pastoral de Rua, da Arquidiocese de BH, referência no trabalho com moradores em situação de rua. 

A decisão de publicar

Às 13h30, a comunicação da Saúde municipal retornou o e-mail com o seguinte posicionamento: “A Prefeitura de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Municipal de Saúde, informa que o Samu foi acionado hoje na manhã desta terça-feira (9) para atendimento de um homem com cerca de 50 anos que foi encaminhado para a UPA Centro Sul com queimaduras”.

A demanda, que já havia sido direcionada para ser feita por email, questionava uma série de informações, como quais lesões foram constatadas, qual a gravidade, se existia descrição da dinâmica do crime que levou aos ferimentos, entre outros.

A comunicação da pasta municipal tem como protocolo dar respostas muito breves sobre atendimento do Samu. Mesmo com a gravidade do caso, o retorno ignorou questões diversas que esclareceriam o estado de saúde atualizado do homem, que já tinha sido encaminhado para a UPA Centro-Sul, também sob responsabilidade da secretaria.

Então, neste momento, havia a confirmação oficial do órgão responsável por fazer o socorro da vítima da existência de queimaduras. Confirmação sucinta, mas uma confirmação que batia com o relato da responsável por acionar o socorro: um homem com lesões causadas por fogo.

A dinâmica poderia ser diferente. O homem poderia ter se queimado sozinho, com a chama de um cigarro ou de outra fonte, por exemplo. Mas não mudaria o fato de um homem estar agonizando de dor – e sendo ignorado – no meio da Praça da Estação. E vítima de queimadura, conforme o próprio Samu.

E mais: todas as autoridades procuradas diziam que nada podiam fazer de imediato para esclarecer a situação se não houvesse um registro policial. Diante de tudo isso, a reportagem reuniu as informações repassadas pela testemunha, inclusive os detalhes de um suposto atentado, e pelo Samu, para viabilizar que a história do homem que agonizava em praça pública fosse contada. 

A equipe do BHAZ avaliou que todas as dificuldades impostas para apurar o ocorrido não deveriam impedir que o caso fosse contado, inclusive sob a visão da testemunha que acionou o socorro ao ver o homem agonizando. Aqui cabe pontuar que a reportagem deveria sim ter deixado ainda mais claro no texto, com toda a assertividade possível, que a informação sobre o atentado foi relatada por colegas da vítima durante o resgate, denúncia que não foi negada e nem confirmada por autoridades policiais durante a apuração.

Após as informações iniciais, veio a reviravolta. Quando um caso ganha destaque, determinados protocolos podem ser revistos. Uma denúncia que antes, em um contato apenas entre assessoria e jornalista, era difícil de ser melhor apurada sem registros formais, após a repercussão torna-se mais palpável e relevante. Talvez não devesse ser assim, mas essa também é uma das funções da imprensa. 

Diante do equívoco da reportagem inicial, devidamente esclarecido no próprio conteúdo e agora neste texto com maior riqueza de detalhes, o BHAZ optou também utilizar este espaço para reforçar sua posição de comprometimento com a transparência em apurações, com a correção de informações equivocadas e de tornar públicos acontecimentos importantes na cidade, inclusive que envolvam parte da população por vezes marginalizada.

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