Comunidade e contemplação: dois desconhecidos

Dois pontos cegos de nossa cultura: comunidade e contemplação. Gostaria de falar aqui sobre eles e sobre a falta que sua perda nos faz.

Como dizia Aristóteles, “o homem é um animal político”. Isso não quer dizer que ele tenha que se filiar a um partido ou se envolver em uma eleição, mas que é um ser que só se realiza ao se colocar em doação, em comunidade. Eis o fundamental: o ser humano, que, como entendiam os gregos, nem é um deus nem um animal selvagem, é dotado de uma fragilidade constitutiva – que o impede de ser autônomo e autossuficiente – mas também de potências que só podem se atualizar quando se encontra em relação. Por exemplo a linguagem: com quem vou falar se estou sozinho? Por isso, se pensamos apenas em nós mesmos ou, quando muito, no limitado grupo de pessoas que compõe nosso círculo pessoal, algo parece nos faltar e, cedo ou tarde, nos vem a pergunta: para que, de fato, serviu minha vida?  

Não somos, no entanto, apenas um corpo. Existem, para nós, demandas materiais de alimentação, vestuário, habitação, etc., mas também necessidades espirituais: temos fome e sede de verdade, bondade e beleza. Quando não encontramos, em nossa vida, um espaço para elas, sentimos que algo nos falta, ainda que, muitas vezes, não saibamos identificar o problema, já que ninguém nos falou a seu respeito, ninguém, ao menos, que tenhamos o costume de ouvir.

Nos dias de hoje, ou trabalhamos ou nos entorpecemos – não necessariamente com drogas ou álcool, mas com notícias irrelevantes, seriados, música ruim, discussões nas redes sociais. E, no fundo, fazemos isso para podermos trabalhar mais. Essa não é, no entanto, uma vida verdadeiramente humana, o que a falta de sentido que tantos têm experimentado nos mostra. O trabalho é fundamental, mas o homem não é uma máquina; sua dignidade está no fato de estar aberto às realidades superiores, que, por isso, devem fazer parte de nossa vida de uma maneira concreta, não como um ideal perpetuamente adiado.

Mas como se abrir para o bem, o belo e o verdadeiro? Por meio da contemplação, que defino como conhecimento com admiração. Contemplar é parar para admirar a verdade das coisas; é se alegrar, apesar de todo o mal, com a discreta presença do bem; é voltar a atenção às coisas belas deste mundo e, quem sabe, entendê-las como um sinal da beleza que existe além. É se maravilhar com o mistério da existência e celebrá-lo até que ele volte a se tornar palpável na passagem dos dias.

Como contemplar? Primeiro, pela fruição da beleza do mundo – o mar, as montanhas e as estrelas. Os antigos tendiam naturalmente à contemplação por meio de uma experiência simples: o céu estrelado, que lhes falava sobre a beleza do cosmos e a grandeza do ser; é por isso, dizia Platão, que a filosofia nasceu da observação dos astros celestes – e por isso que o desencantamento do mundo é uma experiência urbana, típica de alguém que não se lembra mais de olhar para o céu. Mas a arte também tem o poder de nos levar à contemplação – a pintura, a escultura e a arquitetura; o cinema, em seus momentos mais inspirados, e a música, capaz de arrebatar até os espíritos mais embotados.

Por fim, o estudo e a oração; em ambos, o pensamento discursivo é um meio, o assombro é o fim: nos dirigimos ao Absoluto para que possamos nos silenciar em sua presença; buscamos compreender o mundo para que nossa ciência também se transforme em admiração. A finalidade contemplativa do estudo não é mais óbvia para nós, mas, para os antigos (Platão e Aristóteles, os estoicos e neoplatônicos), o ápice da vida filosófica não era a chegar a uma teoria, mas à theoría; não o discurso argumentativo, mas a contemplação: uma visão intuitiva, ampla e profunda do Todo, capaz de despertar na alma o assombro do ser.

A contemplação, neste mundo, é ainda mais urgente que a ação. Mas ela não precisa ser solitária; ela é, na verdade, o fundamento da pólis. Um povo não é simplesmente um conjunto de indivíduos vivendo em um mesmo lugar sob um acordo temporário de paz, tampouco uma liga comercial; é uma comunidade de pessoas que compartilham uma maneira específica de viver e de se posicionar diante do ser. E isso se faz o, sobretudo, por meio das celebrações em comum: os feriados cívicos, dias religiosos de guarda, as comemorações esportivas, etc. A cultura é filha da liturgia e a liturgia, uma forma comunitária de contemplação.

Vivemos, nos dias de hoje, sob o mito do progresso: acreditamos que a humanidade, no decorrer da História, está sempre a aprender mais, sem prestarmos atenção naquilo que, no decorrer do tempo, acabamos por esquecer. Talvez tenhamos nos preocupado demais com a abundância material e deixado de lado aquilo que é capaz de alimentar o que existe em nosso ser de mais profundo. 

Comunidade e contemplação: para os gregos antigos, os fundamentos da vida feliz; para nós, dois desconhecidos. Se ainda podemos aprender algo com os que vieram antes de nós, talvez sejam essas duas noções o que há de mais urgente.

Bernardo Guadalupe

Bernardo Guadalupe nasceu em Belo Horizonte no ano de 1981. Bacharel em Grego Antigo, doutor em Filosofia, é professor na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Também é autor dos livros Rua Musas (2013) e Enéada VI, 9 de Plotino: uma tradução comentada (2020).

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