Uma roda, por favor

Ilustração/MPPR + CBS News/Reprodução

Era um sábado pela manhã e a discussão acalorada em sala era sobre um tema de redação: a adoção no Brasil. Entre argumentos, propostas de intervenção e discussões sobre o assunto, resolvi falar sobre um tema polêmico: a roda dos enjeitados. Na ocasião, o exemplo foi dado para mostrar o quão desburocratizado era o processo de receber um filho, mesmo sem laços biológicos e como ele ficou hoje. Expliquei que a roda era um dispositivo instalado nas paredes de casas de misericórdia e em conventos, a partir de 1726, onde os pais depositavam os filhos, caso a criança fosse rejeitada. Após colocar o bebê em uma superfície plana e desconfortável era só girar a roda e a criança saía do outro lado, onde seria recolhida por freiras e criada, na maior parte das vezes, para uma vida dedicada à religião.

No Brasil era possível encontrar essa forma curiosa de abandonar as crianças entre os séculos XVIII e XX, quando em 1950 o último desses dispositivos foi desativado, em São Paulo. É interessante perceber que depois do fim do uso da roda no nosso país ainda é comum que crianças sejam abandonadas nas ruas, em sacos de lixo e até mesmo que sejam jogadas, com vida, na Lagoa da Pampulha, como ocorrido no ano 2006. Em países como o Brasil será que não seria razoável pensar na roda como uma possibilidade? Explico: essa seria uma boa opção, já que vivemos em um país que não tem campanhas tão efetivas sobre educação sexual nas escolas, que os adolescentes não têm muito conhecimento sobre métodos contraceptivos, que muitas mães engravidam precocemente, que as mulheres morrem diariamente durante abortos clandestinos.

Curiosamente, menos de uma semana depois vejo uma notícia aqui mesmo no BHAZ (leia a reportagem aqui) sobre um dispositivo muito semelhante a uma roda dos enjeitados que passou a ser utilizado no Estado de Indiana, nos Estados Unidos, em 2019. A engenhoca voltou a ser usada exatamente para receber crianças que seriam abandonadas pelos próprios pais. As Baby Boxes, como são conhecidas, apresentam regulação de temperatura, sensores de presença e até alarmes silenciosos. É a roda high tech! Logo nos Estados Unidos, país que serve como referência para o Brasil e para o mundo em diversos aspectos, que as pessoas tratam sobre educação sexual nas escolas, que tem o aborto legalizado em alguns Estados, desde 1973.

E o Brasil? Já que somos tão diferentes dessa realidade talvez o mais coerente seja buscar a nova versão da roda e garantir que menos mulheres morrerão durante abortos clandestinos, por exemplo. É claramente perceptível que no nosso país a situação é bem mais complicada, pois vivemos em um contexto em que as mulheres que engravidam sem planejamento são consideradas culpadas, mesmo que isso não seja uma função exclusivamente feminina e que esse tema quase não seja abordado nas escolas.

E pensar que estamos pertinho do Carnaval. A mídia tem se dedicado exclusivamente a mostrar as inúmeras possibilidades de diversão pelo país: o fortalecimento dos Carnavais de rua e as escolas de samba de São Paulo e Rio. O governo está mais preocupado em votar a reforma da previdência e o cidadão, mergulhado em um recente mar de lama, só quer se divertir. A educação sexual não vai ser prioridade tão cedo porque não é considerada uma pauta relevante pelo governo, e nós, professores, amedrontados em sala de aula não falaríamos sobre algo tão chocante. Enquanto isso discutimos sobre a importância de filmar os alunos cantando o hino nacional para mandar para o Ministro da Educação (leia sobre o tema aqui). Multiplicamos as possibilidades de filhos indesejados gerados no Carnaval, do aumento de infecções sexualmente transmissíveis e dos mais diversos problemas.

Mas no Brasil o que importa mesmo é a farra, a alegria, a diversão.

E uma boa dose de patriotismo, isso não pode faltar!

Marcelo Batista[email protected]

Marcelo Batista é professor de redação no Bernoulli, no Qi, na plataforma Kuadro, na Qualoo e na Transvest. Graduado em letras pela UFMG, é o fundador da Aprendi com o Papai, plataforma que conta com um canal no Youtube e salinha de redação em Belo Horizonte. Com quase 15 anos de experiência em sala de aula, já trabalhou no ensino fundamental, médio, pré-vestibulares e preparatórios para concursos públicos, o que faz com que tenha uma grande proximidade não só com a educação, mas também com as temáticas mais relevantes para a juventude.

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