O STF, a criminalização da homofobia e o avanço na consolidação dos direitos fundamentais

Leo Pinheiro/Fotos Públicas

Por Rodolpho Barreto Sampaio Júnior*

Na semana passada, a Copa América 2019 foi aberta com o jogo entre Brasil e Bolívia. Ao longo de toda a partida, como já se tornou comum nos estádios brasileiros, especialmente após a Copa de 2014, o goleiro da equipe adversária era “ofendido” todas as vezes em que iria fazer a reposição da bola. Em uníssono, a torcida gritava “bicha” enquanto o goleiro corria para a cobrança do tiro de meta. Em seguida, os torcedores se entreolhavam, com sorrisos contidos de satisfação, como que se parabenizando e se encorajando mutuamente por aquela atitude, que se repetiria sucessivamente a cada novo tiro de meta, até o apito final.

Qual a razão pela qual a elite econômica, muito provavelmente a única representante dos vários extratos que compõem a sociedade brasileira que se encontrava no Estádio do Morumbi, se acha no direito de “ofender” gratuitamente um jogador do time adversário? E por qual razão a referência à orientação sexual de uma pessoa seria considerada ofensiva? É curioso observar que as ofensas raciais dirigidas a jogadores já suscitam o repúdio por parte dos atletas, dos comentaristas e especialmente dos torcedores. As ofensas homofóbicas, no entanto, são timidamente questionadas por setores da imprensa, e não por conta de seu caráter odioso, mas simplesmente porque podem levar à imposição de multa à equipe. As ofensas homofóbicas são tão naturalizadas que causam reação não por sua natureza, mas sim por suas possíveis consequências patrimoniais.

É justamente nesse contexto que deve ser apreciado o julgamento do Supremo Tribunal Federal que, também na semana passada, reconheceu a inércia do Parlamento e criminalizou a homotransfobia. Mesmo depois de 30 anos do advento da Constituição da República, nenhum projeto de lei que coibisse a discriminação contra a população LGBTQ+ teve efetivo andamento, quer na Câmara, quer no Senado. Desse modo, o STF tomou para si o papel de criminalizar a homotransfobia, reconhecendo a vulnerabilidade da população LBTQ+, a violência a que está submetida e a ausência de medidas que contemplem suas pautas e demandas específicas.

Tecnicamente, a ampla maioria dos integrantes do STF definiu que, enquanto o Congresso não aprovar uma lei que condene a discriminação homofóbica e transfóbica, a Lei do Racismo se aplicará a esses casos. Não estaria sendo criado um novo crime, mas ampliando-se a noção de racismo, tal como já fizera o próprio Tribunal ao incluir o antissemitismo no espectro de incidência da Lei do Racismo. Muito provavelmente, 9 entre 10 criminalistas irão criticar esse entendimento, e o farão porque não se teria observado a regra nullum crimen sine lege e porque o ativismo judiciário do Supremo Tribunal Federal seria inadmissível, especialmente em matéria penal.

A primeira crítica realmente merece uma análise mais acurada. O princípio de que não há crime sem lei que o tenha previamente previsto é um marco na evolução das garantias individuais e protege o indivíduo do arbítrio estatal. Proíbe-se que a pessoa seja presa por uma conduta que, quando praticada, não era considerada um crime. Não há, assim, a possibilidade de surpreender-se a pessoa, prendendo-a por um ato que somente depois de executado passaria a ser considerado um tipo penal. A Constituição brasileira prevê, em seu art. 5º, justamente o que trata dos direitos e garantias fundamentais, que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”. Quanto a esse aspecto, pode-se dizer que o Supremo Tribunal Federal realmente elasteceu perigosamente os limites daquela garantia individual. Ele não criou um novo crime, mas ampliou o conceito legal para abranger condutas que, até então, não eram criminalizadas. Levada a seu limite, essa interpretação esvazia o Legislativo e confere ao Judiciário a faculdade de criminalizar condutas a partir da ressignificação dos crimes já existentes. A favor do STF, entretanto, registra-se que essa decisão do STF não terá efeitos retroativos, e não se tem notícia de que alguém que já esteja sendo julgado criminalmente por atos de homo ou transfobia com base na Lei do Racismo. Assim, estaria atendido o pressuposto maior do princípio nullum crimen sine lege, pois ninguém seria surpreendido ao ser processado por uma conduta que anteriormente não era tipificada como crime.

A segunda crítica que se tem dirigido à decisão é a de que o STF deveria exercitar a autocontenção, evitando, tanto quanto possível, condutas ativistas que violassem o princípio da separação dos poderes. Essa é uma discussão que ainda vai longe, pois o que está em jogo, aqui, é o próprio papel que deve ser desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal. Deveriam seus ministros se abster de certas discussões, remetendo-as à arena política, ou então, cabe-lhes dirimir todo e qualquer conflito que lhe for apresentado? Não há muitas dúvidas de que os Ministros do Supremo Tribunal Federal não parecem dispostos a abrir mão desse poder e não relutam em adentrar espaços que, à primeira vista, competiriam ao Executivo ou ao Legislativo. Por isso, não se acanham, por exemplo, ao definirem critérios objetivos para condicionar o fornecimento de medicamentos de alto custo por parte dos entes públicos.

Assim, acusar-se o STF por seu ativismo parece não ser visto por seus integrantes como uma crítica negativa. Ao contrário, entendem que cabe àquela Corte manifestar-se sempre que houver uma omissão dos demais poderes, mormente quando o Tribunal puder exercer uma função contramajoritária. Isso já foi visto quando se reconheceu a união entre pessoas do mesmo sexo e volta a ser visto agora. O Supremo Tribunal Federal entende que deve otimizar a defesa dos direitos fundamentais, estendendo-os às minorias mesmo quando a “maioria democrática” não o fizer. Essa é a conclusão a que se chega quando se analisa os argumentos apresentados pelos ministros: o descaso dos poderes executivo e legislativo com a população LGBTQ+ exige uma resposta do próprio aparato estatal, e essa resposta virá nem que seja por meio do Poder Judiciário, que irá conferir maior eficácia aos direitos fundamentais, em busca de sua efetiva consolidação.

O julgamento do Supremo Tribunal Federal realmente levanta indagações. Pode instaurar um precedente perigoso, que põe por terra um princípio que se estabeleceu desde a Revolução Francesa, mas também pode dar início a um sistema de proteção que minimize os efeitos da discriminação contra a população LGBTQ+. No entanto, para além da discussão estritamente jurídica, existe a pergunta que não quer calar: por que a indignação com a decisão judicial que impede as pessoas de discriminarem as outras? Por que tanta comoção com o entendimento de que é inaceitável ofender ou agredir o outro apenas por conta de sua orientação sexual? Talvez essa seja a pergunta que deva conduzir os debates acerca da decisão da Suprema Corte.


* Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é professor na PUC Minas e doutor em direito.

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior[email protected]

Rodolpho Barreto Sampaio Júnior é doutor em direito civil, professor universitário, Diretor Científico da ABDC – Academia Brasileira de Direito Civil e associado ao IAMG – Instituto dos Advogados de Minas Gerais. Foi presidente da Comissão de Direito Civil da OAB/MG. Apresentador do podcast “O direito ao Avesso”.

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