Imagine estar em um barco ancorado à beira da praia e em outro instante – como num piscar de olhos -, descobrir-se em alto mar. O surgimento do novo coronavírus lançou comerciantes de todo o Brasil em águas desconhecidas. “Fiquei com bastante medo. Ou a gente começava a pensar em algo para transformar e se adaptar ao momento, ou a gente ia ficar para trás”, pontua a empresária belo-horizontina Rafaella Borges, ao resumir o sentimento de milhares.
Na mesma proporção do que sabemos sobre o que se esconde no fundo do oceano, a crise da Covid-19 impôs aos trabalhadores do comércio mais perguntas do que respostas. E diante de um tsunami de surpresas, cada experiência é única. Ideias desengavetadas, trabalho em equipe e até mesmo a chance de sair do desemprego – para tornar-se dona do próprio negócio. A capital mineira reúne empreendedores que seguiram navegando, mesmo diante do desconhecido. Eles carregam consigo algo comum: a capacidade de reinventar – dos negócios a si mesmos.
“Quando começou a pandemia, sofremos muito. Com isolamento, ninguém saía mais, e, como vendemos roupas casuais, para sair no dia a dia, as pessoas não compravam. Pensei: ‘o que vamos arrumar agora?’”, lembra Thaís Alves, que, do alto do Aglomerado da Serra, maior favela de Minas Gerais, passou a tocar a marca Dabliu com o marido, William Pedro, e ainda virou modelo das roupas.
A necessidade de reinvenção para encarar águas desconhecidas não foi exclusividade de Thaís, William Pedro ou Rafaella, mas de todos os responsáveis pelos 80 mil estabelecimentos comerciais ativos em BH. “A grande questão é entender que aquele mundo que a gente viveu não existe mais. Foram colocadas novas variáveis aí para jogo e a gente tem que entender essas variáveis no sentido de se manter competitivo” explica o professor Felipe Gouvêa, que atua nas áreas de gestão e administração no Centro Universitário Una.
Solução dentro de casa
Thaís sempre incentivou o marido William a trabalhar com a Dabliu, marca de roupas criada por ele. Tudo começou em 2019, quando o homem pediu que um amigo estampasse um moletom. A peça fez tanto sucesso entre quem vive no aglomerado que o bom gosto virou negócio: e já se destacava antes do novo coronavírus. Com a demanda em alta, a produção também aumentou. Mas a chegada da pandemia mudou tudo, de mais responsabilidades para Thaís ao adiamento da abertura de uma loja física. “Aí chegou um carregamento cheio de roupa, e eu não sabia o que fazer com ele”, relata a empreendedora, que viu a oportunidade de minimizar perdas surfando nas ondas da internet.
“Então veio a ideia de começar a movimentar o Instagram. Eu não tinha experiência com esse ramo, mas pensei em fazer um ensaio fotográfico para chamar a atenção do público. Eu nunca gostei de tirar foto [como modelo], mas decidi que queria que o ensaio ficasse a cara da marca, então decidi ser a modelo”, explica. “O ensaio bombou: em menos de 24 horas, eu já tinha vendido quase metade do carregamento, e tinha chegado muita coisa”, recorda Thaís.
“Fiquei muito empolgada, comecei a bombar o Insta, fazer parcerias, o William tem influência no aglomerado, e foi chegando pra gente de fora também”, explica. Além de investir no digital, Thaís também revela outras estratégias para potencializar a Dabliu: “No início coloquei motoboy com frete grátis para ajudar o povo, somos sempre constantes nas postagens, conversamos com os clientes no WhatsApp, mantemos um contato próximo. Isso faz o nosso diferencial”.
No mundo do isolamento social, as redes sociais, aplicativos e a web se tornaram o principal canal de vendas para 71% dos comerciantes em todo o estado de Minas. O percentual foi uma das conclusões da 9ª edição do “Impacto da pandemia de coronavírus nos Pequenos Negócios”, pesquisa realizada pelo Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) em novembro de 2020.
‘Trabalho a semana toda’
Rafaella e Vanessa Borges trabalhavam separadamente antes da pandemia. A mãe, decoradora profissional há cerca de 12 anos, se ocupava com locações e festas do Vanessa Borges Ateliê e Festa. A filha, por sua vez, investia na fabricação e venda de doces, como brownies, alfajor e cookies, por meio da Candy B. Dois meses de ateliê fechado e uma diminuição nos pedidos de doces fizeram mãe e filha colaborarem. A união resultou em um novo produto, que já encontrou seu espaço.
“Eu comecei a fazer bolo na pandemia mesmo. Em festa pequena a prioridade é sempre o bolo. Muitas vezes, para fazer uma comemoração em casa, só com o pessoal da família, as pessoas não querem o docinho, vai só um bolinho mesmo… Aí eu comecei e tem dado certo”, relata Rafaella. “Eu acho que agora já estou conseguindo vender mais do que eu vendia antes da pandemia, acho que justamente por ter me adaptado ao que o mercado estava pedindo, eu consegui aumentar muito a minha cartela de clientes, e foi crescendo cada vez mais”, explica.
A mãe de Rafaella lembra que o clima era de pânico no início da pandemia, mas que aproveitou o tempo isolada para aprender. “Vieram essas chuvas de live no Instagram e aí eu comecei a assistir live de tudo quanto é coisa que tinha, eu comecei a aproveitar esse tempo que eu estava em casa para aprender. E daí surgiu a ideia do balão personalizado, que foi a primeira coisa que eu comecei a fazer durante a pandemia: os balões a gás personalizados”, diz Vanessa Borges.
A empresária ampliou, então, para caixas com flores, chocolates, além dos próprios balões personalizados. E a ideia começou a mostrar uma nova perspectiva. Agora, mãe e filha oferecem um kit para festas menores, dentro de casa. Além de fácil transporte, o produto reúne decoração própria, bolo e docinhos variados. Mesmo sem grandes eventos, as duas passaram a trabalhar mais do que esperavam diante do cenário. “Como não podemos fazer festas grandes, as pessoas comemoram no dia do aniversário mesmo, seja uma segunda ou terça-feira, fazem na data mesmo. As pessoas estão comemorado em qualquer dia da semana, então a semana inteira a gente tem trabalho”, diz Vanessa.
Por incrível que pareça, na pandemia, eu cresci muito como pessoa e profissional
Vanessa Borges
Assim como as redes sociais, a criação de novos produtos e serviços está no radar dos mineiros: até o fim do último ano, quase 30% dos comerciantes mineiros incluídos na pesquisa do Sebrae-MG afirmaram que passaram por mudanças valiosas por causa da pandemia e outros 43% lançaram ou passaram a vender produtos novos no período de crise.
Lembra daquela ideia?
Em um cenário de desafios e limitações, revisitar ideias pode ajudar a traçar novas rotas. É o caso do empresário Adélcio de Castro, proprietário do Boivindo, restaurante no Sagrada Família, região Leste de BH, e do empreendedor Rodrigo Ribeiro, do bar Bucaneiro, no Anchieta, Zona Sul da capital mineira. Eles resgataram iniciativas que estavam de olho antes da Covid para enfrentar a crise. O primeiro apostou no preparo e venda de alimentos pré-cozidos à vácuo, de carnes a acompanhamentos diversos. O segundo passou a vender drinks de um jeito diferente, em potes de 1 litro.
“Tivemos que fazer uma reinvenção. Ficamos fechados por meses, minha cozinha ficou ociosa, com equipamentos lá, o chef precisando trabalhar”, explica o empresário Adélcio de Castro. Foi então que uma brincadeira “antiga” apontou uma solução. Nasceu, então, a EuQFiz. “Começou como brincadeira no sítio do meu sócio, a vizinhança começou a comprar, fomos fazendo, e não cabia mais na cozinha da casa dele. Compramos equipamentos e estamos aí como empresa a partir de setembro, com marca própria”, diz o empreendedor.
“Nada mais é do que um produto entregue na sua mão, ou em casa, embalado a vácuo, da mesma forma que você compra uma carne congelada. Mas não demanda o conhecimento técnico e o tempo para cozinhar. Criamos e produzimos carne no sistema sous vide: tem um termocirculador, que faz o pré-cozimento de alimento dentro de um plástico especial e adequado para as temperaturas extremas. Fazemos qualquer tipo de alimento, inclusive os mais difíceis de fazer em casa, como cupim, costela de boi, pirarucu, entre outros”, conta.
O empresário diz que já “brincava” com um termocirculador desde 2019, mas que os equipamentos ficaram parados por um ano. “Comprei equipamentos há uns dois anos para tentar começar a usar, mas ficou um ano parado, por precisar de muito estudo. Na correria do dia a dia não dá, precisa ser alguém que tem formação. Meu sócio é chef e tem formação, foram mais de seis meses de erro e acerto até desenvolvermos tudo”, explica Adélcio.
Para o empreendedor, o diferencial, além da qualidade e custo menor, é a chance de qualquer um se tornar “chef” dentro da própria casa. “Às vezes, quando a pessoa quer comer algo bom, ou vai para o delivery, ou faz uma bagunça na cozinha e demora para preparar algo bom. Se vai receber visita, quer agradar. Aí que entra nossa dedicação: pega o produto, liga panela com água, coloca na airfryer ou no micro-ondas, em 5 minutos você tira, às vezes passa na frigideira para selar e está pronto. Põe no prato, coloca um acompanhamento, que também vendemos, e está pronto um jantar gourmet que levou 8 minutos pra fazer”, detalha.
“Na hora que a pessoa vê o prato, comida cheirosa, sem conservantes, ainda duvida que você foi capaz de preparar, fala que pediu de delivery. Aí você fala: ‘não, EuQFiz’. Vira história, fica bom pra compartilhar. Ele te dá a chance de ser o chef. Gera conforto, faz a pessoa parar de pedir comida pronta, que não sabe de onde vem, qual a qualidade, higiene”, afirma Adélcio.
‘Umas pedrinhas de gelo e está pronto’
Rodrigo Ribeiro, do Bucaneiro, adaptou a ideia de drinks no pote para conseguir alguma renda em meio à pandemia. “Eu comecei a pensar em alguma forma de ter uma receita, aí pensei em drinks que pudéssemos entregar e que chegassem legal aos clientes”, diz. “Eu já pensava antes nessa ideia, o drink mais tranquilo de fazer em jarras, quantidades maiores, é a sangria. Um drink que quanto mais tempo ficar dentro de um recipiente, na geladeira, mais gostoso vai ficar por ir pegando os sabores das frutas”, conta.
Segundo o empreendedor, ele realizou testes em casa e foi criando outros drinks, para vender em potes, a partir das sangrias. “A grande dificuldade dos drinks em geral, para entrega, é que depois de um tempo o gelo derrete. Ai pensamos em fazer um drink que não colocamos gelo nele, ou que a gente bata o gelo pra que ele chegue na casa da pessoa sem estar diluído, sem ficar um drink aguado. Aí, em casa, a pessoa vai e coloca o gelo dela”, explica. “Então, os drinks são um pouco mais concentrados do que os do bar, quando chega na sua casa você só coloca umas pedrinhas de gelo e o drink está pronto”, continua.
“O pote é de 1 litro, mas é como se fossem quatro drinks, cada um deles com cerca de 300 ml, contando com o gelo. De começo a gente teve até uma resposta bem boa, mas a gente estava fazendo de uma maneira que ao longo do tempo precisou mudar. A gente recebia encomenda e fazia entrega no fim do dia. Ao longo do tempo, vimos que muita gente queria o drink na hora que pedia e passamos a vender por aplicativo, além da entrega própria. Hoje, fazemos tanto para entregar quanto para o pessoal do bar que quer continuar bebendo em casa”.
Melhor agora
Se por um lado a pandemia do novo coronavírus fez comerciantes batalharem em busca de retornos, por outro, em alguns casos, a crise da Covid-19 tornou-se o momento de reviravolta. O casal de empreendedoras Izabela de Mello e Camila Caldeira, por exemplo, saiu do desemprego para abrir o próprio negócio, a Bella Cucina. Já na região do bairro Jardim Felicidade, Zona Norte de BH, o movimento no comércio foi na contramão do visto na maior parte do país, como conta Elisângela Braga, voluntária da Abafe (Associação de Bairro do Jardim Felicidade).
“As opções de grandes centros comerciais para os moradores daqui são o Centro de BH e Venda Nova. Parece que, por causa da pandemia, o pessoal se concentrou mais nos bairros, nos comércios locais mesmo. Não sei se as pessoas empreenderam mais pelo desemprego ou pela oportunidade”, diz Elisângela. Apesar da dúvida, ela garante que a pandemia favoreceu os negócios no Jardim Felicidade.
“Tivemos a abertura de novos comércios, de duas lojas de roupa. Inclusive eu fui uma das pessoas que foram na loja. Ela [a proprietária] fez um preço razoável, comprei dez conjuntos de roupa para meu filho de 6 anos. Gostei, indiquei para outras pessoas”, conta. “E aí, o que ela fez? Abriu uma outra loja, que é só dela e ficou com roupa de adulto. A filha montou outra na mesma rua, mas só de roupa infantil”, relata Elisângela, ao ressaltar a valorização do comércio local devido ao risco de contaminação no transporte público.
O comércio por aqui não chegou a ter baixas, pelo contrário, prosperou
Elisângela Braga
Um espetinho e uma loja de chinelos também abriram as portas no Jardim Felicidade. E os negócios não pararam de surgir: segundo Elisângela, até mesmo uma rede de supermercados começou a construir uma unidade por lá. Em outro exemplo do bairro, um vendedor de caldo de cana deixou uma barraca para arrendar uma lanchonete, já que a antiga proprietária recebeu proposta para tocar um sacolão em outra cidade. “Deu para ver que ela evoluiu o comércio dela lá, a qualidade de vida, pra ter arrendado”, conta a voluntária da Abafe.
‘Apostar no sonho’
“Uma onda que trouxe novos ganhos, novas possibilidades”. A definição do impacto da pandemia no comércio feita pelo professor Felipe Gouvêa explica a virada na vida de Izabela e Camila. Antes da pandemia, o casal trabalhava em shopping e decidiu tirar um período de descanso. Mas logo quiseram encarar novos desafios e resolveram investir o dinheiro que receberam dos acertos na Bella Cucina.
“A gente conversando com uma amiga nossa aqui do bairro, ela falou de comida. Ela falou ‘por que vocês não fazem comida? A Izabela gosta tanto de cozinhar’. Aí eu e a Camila sentamos pra conversar e ela falou ‘vamos apostar no seu sonho então, porque você sempre acreditou nos meus, então agora vamos apostar no seu sonho, vamos fazer uma empresa de comida saudável’”, relata a primeira.
Na empreitada, as duas pensaram em trabalhar o conceito de comida saudável e não necessariamente ‘fitness’. “Primeiro a gente queria não ter o nome de ‘comida fit’. E a gente queria ter um diferencial na nossa empresa também, além de ser uma comida saudável. Por exemplo, a gente preza muito pelo sabor das comidas, então as comidas têm muita cor, muito sabor”, explica Izabela, inspirada na própria experiência de desistir de dietas por causa do sabor ruim da comida.
Já Camila explica que a ideia sempre foi unir qualidade a um preço menor. “A ideia do Bella é que qualquer pessoa consiga comer saudável com um custo baixo, já que normalmente você vai pedir uma comida saudável que vai noz, salmão, arroz integral e o custo é muito alto. Então teve esse processo de pesquisa para que a gente consiga passar para o consumidor final um valor que cabe no bolso para qualquer prato”.
Com mão de obra reduzida, que conta com Izabela, Camila e dois consultores, as empreendedoras contrataram uma pessoa para trabalhar o marketing da marca – o que consideram um “luxo”. “O único ‘luxo’ que a gente deixou foi a contratação de um marketing, já que eu nunca tive paciência para Instagram, Facebook, e a Izabela também não. Então, terceirizamos o marketing. O pai da Izabela, que trabalha no banco e é formado em administração, ajuda a gente também”, diz Camila.
Horizontes
Ainda que empreendedores e empreendedoras da capital tenham conseguido, cada qual a seu modo, tocar negócios em meio à pandemia, eles ainda vislumbram outros horizontes – com objetivos que passam pela geração de mais renda até investimentos futuros.
“Estamos estourados no mercado, temos quase 10 mil seguidores fiéis, gente que engaja de verdade. Temos clientes fiéis, que compram tudo que a gente lança, às vezes mandamos malha para fora do Brasil. Estamos incrementando com o lado feminino. Muita mulher procura roupa com a gente, e estamos sempre querendo melhorar”, planeja Thaís Alves, da Dabliu. “Foi uma empreitada por força da situação e pelo estudo prévio que já fizemos, aproveitamento da ociosidade da nossa cozinha. Deu tão certo que tivemos que montar outra cozinha”, diz Adélcio de Castro, da EuQFiz.
No caso de Izabela e Camila, a pandemia do novo coronavírus ajudou a mudar a situação financeira delas. “A gente hoje já está numa situação melhor, até mais do que a gente tinha quando trabalhava em loja de shopping. Já tem uma estabilidade, a gente ainda tem muita coisa para melhorar e ampliar também”, diz a primeira.
“A gente já tem um planejamento de cinco anos de coisas que a gente vai aumentar no Bella e acrescentar, só que a gente está esperando ter um espaço nosso. Hoje a gente trabalha na cozinha da minha avó, então a gente tem que respeitar uma dinâmica da casa. Quando a gente for para a nossa cozinha, que está em reforma, a gente vai conseguir atender uma demanda maior, ampliar nossos produtos…”, conta Izabela.
Já a proprietária do Vanessa Borges Ateliê e Festa conta que a renda caiu muito, mas que tem conseguido se sustentar a partir da colaboração com a filha, Rafaella. Ela aposta na personalização de produtos para atrair cada vez mais clientes. “Acabou entrando em moda com isso tudo [trazido pela pandemia] a questão das coisas personalizadas, aquela questão do presente feito especialmente para você, com o seu nome”, diz Vanessa, ao reforçar que aposta em um crescimento neste ano.
“Fácil não foi, quase surtei, mas está dando mais do que certo“, resume Thaís.