Depressão e suicídio nas faculdades de medicina: Alerta máximo em BH

Fotos: UFMG + Google Street View

“É um ambiente que existe um abuso de álcool e drogas, isso é um fato. Vejo muitas pessoas recorrendo a remédios para poder ficar mais calmo, menos ansioso ou para ficar mais alerta”; “Faço tratamento para depressão e ansiedade há vários anos e o curso sempre exige que eu me adapte para não sofrer tanto com o estresse”. Essas frases fazem parte de depoimentos de alunos de medicina que vivem uma rotina exaustiva nas faculdades de Belo Horizonte.

Os casos de depressão entre estudantes de medicina são cada vez mais comuns. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Faculdade de Minas (Faminas) já registraram casos de tentativas e suicídios de seus estudantes do curso. De acordo com estudo realizado, em todo o Brasil, pela Universidade de São Paulo (USP), 41% dos estudantes apresentam sintomas depressivos e 81,7%, estado de ansiedade. O Bhaz conversou com estudantes, universidades e especialistas para tratar desse assunto tão delicado.

“No primeiro semestre do curso, eu tive uma depressão bem séria. Os motivos tiveram início antes da faculdade, mas o estopim foi lá dentro. Muito por causa da pressão do vestibular. E, quando você chega na faculdade, as aulas não são boas, tem muito professor que não se importa com aluno, não se importa em ensinar”, conta uma estudante de medicina da UFMG que prefere não se identificar.

“A gente fica muito desmotivado no primeiro período, mas não temos esse direito, porque todo mundo fala com a gente: ‘Nossa, mas você está onde todo mundo queria estar’. Então, parece que reclamar é um pecado, a gente não pode. Com isso, a gente se culpa muito, por não estar gostando, e se cobra muito em dar sempre o melhor da gente, mesmo que ultrapasse nosso limite. Tive que trancar a faculdade por um tempo”, completa.

“Faço tratamento para depressão e ansiedade há vários anos e o curso sempre exige que eu me adapte para não sofrer tanto com o estresse. Percebo por experiência de trabalho e pessoal que o tema ainda permanece como um tabu social, apesar de crescentes publicações científicas sobre o assunto”, revela, ao Bhaz, a estudante do 11º período de medicina da Faminas, Kelly Cristina Teixeira da Silva.

Tabu

O psiquiatra Filipe Calais, da Clínica do Bem, em Belo Horizonte, afirma que devemos falar mais abertamente sobre o tema. “Durante séculos da nossa história, o suicídio foi tratado como tabu, principalmente por razões religiosas, morais e culturais. Um ‘pecado’. Atualmente esses valores ainda prejudicam a aproximação das pessoas à temática”.

O adoecimento psíquico impede que a pessoa enxergue as coisas como elas realmente são, e deturpam a percepção da realidade. “Ninguém nessa situação tem condição de fazer um juízo verdadeiramente crítico da realidade. As pessoas que apresentam comportamento suicida não o fazem para chamar atenção, mesmo que essa seja a motivação do indivíduo, o episódio não deixa de ser um sintoma do adoecimento psíquico”, explica.

De acordo com a psicóloga Michelle Alves, vivemos um momento no qual a palavra de ordem é “alegria”. A cobrança pela felicidade é imensa e esquecemos que a tristeza, a desmotivação e a perda de interesse são naturais na nossa vida emocional.

Mas, afinal, como identificar uma pessoa depressiva? “A depressão é um transtorno no qual isso que é normal em todos nós está em excesso e persistente. Mas o diagnóstico deve ser realizado por um profissional de saúde mental, pois considera-se não apenas as alterações dos sintomas psíquicos (alterações de humor, vazio, tristeza, culpa, ausência de prazer e planos), mas também físicos (alteração sono, apetite, libido) e comportamentais (isolamento, mudança de atitude, agitação, lentidão)”, conta a profissional.

A estudante da UFMG explica que muita gente acaba recorrendo a vícios, como forma de compensar o que passa durante a semana, o que está sentindo ou às vivências que têm. “É um ambiente que existe um abuso de álcool e drogas, isso é um fato. Vejo muitas pessoas recorrendo a remédios para poder ficar mais calmo, menos ansioso ou para ficar mais alerta. E, muitas vezes de forma indiscriminada, de forma que não é direcionada por um profissional qualificado”, conta.

“No início do curso, vi muitos colegas tomando ritalina ou remédios semelhantes, para poder tirar notas boas. Ao longo do curso, nos preocupamos menos com nota e mais em cumprir o que precisa ser feito. Aí usamos a ritalina e afins para chegar lá. Isso gera uma ansiedade muito grande, não conseguimos dormir. Sofremos com crises de pânico também, principalmente em épocas de prova. Com isso, mais calmantes e ansiolíticos diversos”, desabafa.

“A rotina do curso inicialmente é muito cansativa, estressante com pouco lazer. Convivemos muito pouco com nossos familiares, raramente encontramos nossos amigos e companheiros, especialmente em semana de prova. Nossas amizades terminam por se restringir aos nossos colegas de curso, pois passamos muito tempo juntos”, conta a estudante da Faminas.

O psiquiatra Filipe Calais explica que a depressão pode se manifestar das mais variadas formas, como citado acima. “É comum também haver pensamentos de ruína e desesperança, melancolia e angústia acentuada. A associação desses sintomas tem forte potencial de gerar pensamentos suicidas, tentativas de suicídio ou mesmo o suicídio. Vale frisar que não é só a depressão que pode evoluir para o suicídio. Quadros como Esquizofrenia, Transtorno Bipolar, uso de drogas e dependência química, além dos Transtornos de Personalidade e Transtornos da Ansiedade, também são adoecimentos psíquicos que se associam a altas taxas de suicídio”, explica.

“O estudante, que não tem um suporte familiar e amigos pode sofrer muito com a rotina, terminando por se sentir isolado, sozinho e dando margens a sentimentos que possam o levar a desistir dos estudos e de si mesmo. É importante que amigos e familiares entendam nossa rotina e nos dê apoio durante o curso”, completa Kelly Cristina.

“Não são só os alunos que estão doentes, é toda uma instituição doente. Os médicos, em geral, são doentes. A faculdade tem se mostrado mais aberta a conversar, com muitos simpósios sobre saúde mental, prevenção de suicídio. Eu me questionei muito, achei legal a iniciativa, mas acho que a faculdade ainda não percebeu que tem que mudar é a base. Tem que ser feito uma reestruturação de currículo, de entrada na residência, mostrando para os alunos que existe um mundo além da medicina”, completa a estudante da UFMG.

Como ajudar?

A melhor conduta é sempre acolher, escutar, conversar e levar a pessoa com indícios de depressão até um serviço ou profissional de saúde mental. “Nesses casos, a pessoa, geralmente, não possui ‘forças’ para buscar ajuda sozinha e se um familiar ou amigo conseguir acompanhá-lo até um serviço ou profissional de saúde mental será a melhor ajuda que essa pessoa receberá. Só orientar onde ir, na maioria dos casos, percebe-se que é insuficiente. Acompanhar torna-se fundamental nesse processo. Algumas universidades têm espaço de acolhimento para os universitários”, orienta a psicóloga Michele Alves.

“A abordagem dos quadros psiquiátricos é individualizada e vai sempre se basear nos princípios de não causar dano, avaliar a intensidade e gravidade dos sintomas e suas repercussões no dia a dia da pessoa, além de outro fator muito importante e muitas vezes determinante que é a rede de suporte social à qual o indivíduo tem acesso”, pondera o psiquiatra Filipe Calais.

A depressão e todos outros adoecimentos psíquicos são doenças complexas, com apresentações variadas e respostas terapêuticas que variam imensamente entre um indivíduo e outro. “O ideal é que o tratamento inclua a medicação, quando realmente necessário, terapias comportamentais, como a Terapia Cognitivo Comportamental, e outras modalidades de psicoterapia, incluindo a Psicanálise e Mindfulness (Atenção Plena). Outro ponto indispensável é a prática regular de atividades físicas que ajuda imensamente com a melhor a de sintomas depressivos e ansiosos”, explica Calais.

UFMG se posiciona

Por meio de nota, a Faculdade de Medicina da UFMG diz que conta com ações e programas que visam a promoção da saúde mental dos estudantes, assim com a prevenção do sofrimento psíquico, o acompanhamento e apoio psicopedagógico. “Dentre os serviços ofertados, destacamos o Núcleo de Apoio Psicopedagógico aos Estudantes (Napem), que tem como objetivo prevenir problemas emocionais e ajudar os alunos a superar tanto problemas já existentes quanto dificuldades encontradas durante o curso. O núcleo foi referência para a criação de outros centros de apoio na UFMG e conta com uma equipe de professores e psicólogos que se dedicam a prestar atendimento aos alunos. O fluxo de atendimento pode ser consultado no site do Napem“, diz a nota.

Escuta Acadêmica

Os alunos dos cursos da Faculdade de Medicina da UFMG também contam com uma Assessoria de Escuta Acadêmica, que é vinculada ao Centro de Graduação e consiste em um espaço para a acolhida e escuta, orientação e encaminhamento. A Escuta recebe, orienta e acompanha os trancamentos de matrícula, os pedidos de Regime Especial, situações de excepcionalidade, e demandas originadas por conflitos vividos no decorrer do curso, como situações de adoecimento psíquico. Neste caso, os alunos são encaminhados para atendimento junto ao Napem. Mais informações AQUI.

Projetos e ações

Além desses serviços, outras ações e projetos de extensão da faculdade também têm como objetivo a promoção da saúde mental dos estudantes. O Projeto de Extensão V.I.D.A.S (Veículo Inspirador de Amanhãs Solidários) é um deles. O projeto visa a prevenção do suicídio por meio de compartilhamento de mensagens positivas nas redes sociais. O V.I.D.A.S é coordenado pelo professor do Departamento de Saúde Mental, Humberto Corrêa, que também é Presidente da Associação Brasileira para o Estudo e a Prevenção do Suicídio. Mais informações AQUI.

Este ano, durante todo o mês de setembro, a faculdade realizou ações do Projeto Vida Mais Viva. O objetivo foi proporcionar, além de apresentar ao público, as atividades e ações que já existem dentro da instituição e que promovem a saúde e a prevenção do sofrimento psíquico. Exposições, aulas de yoga, apresentação de filmes, oficinas e palestras fizeram parte da programação do projeto, coordenado pela psicóloga do Núcleo de Apoio Psicopedagógico aos Estudantes da Faculdade de Medicina da UFMG, Maria Aparecida Miranda da Silva, que também atua na Rede de Saúde Mental da UFMG. Mais informações AQUI.

Foto: Carol Morena/UFMG

Faminas se manifesta

A Faminas-BH se posicionou, por meio de nota, ao Bhaz. A faculdade disse que “entende que o acompanhamento da vida acadêmica do seu aluno auxilia numa formação de qualidade e o prepara para os desafios do mercado de trabalho”. Ainda afirmou que durante todo o ano de 2018, a instituição intensificou as ações e ampliou os horários de atendimento do Núcleo de Atendimento Psicopedagógico (NAP), que oferece, além dos horários individuais, atendimentos aos alunos para auxiliá-los no planejamento da sua vida acadêmica, com a organização de tarefas, rotinas de estudo e administração de tempo, contribuindo para aprimorar o seu próprio processo de aprendizado. Veja a nota na íntegra:

Os atendimentos psicológicos individuais acontecem todos dias, com horário marcado, e tem como objetivo identificar questões emocionais e orientar o aluno para um tratamento, caso necessário.

A Faminas também promove diversas ações com o objetivo de cuidar da saúde e melhorar a qualidade de vida de seus alunos e colaboradores. São eles: Roda de Conversa, palestras, congressos e simpósios, oficinas para professores e coordenadores, cinema etc. Todas as ações são comunicadas via e-mail marketing aos alunos, além de murais e TV’s espalhadas pela instituição.

No fim de agosto, tivemos a primeira sessão de cinema na instituição, promovido pelo NAP, usando séries de TV famosas para falar das situações enfrentadas pelos alunos no do dia a dia. “Histórias de cinema” exibiu um episódio da série Black Mirror.

O Núcleo, em parceria com os alunos, durante o mês de setembro, fez ações de conscientização com mensagens motivacionais espalhadas pela instituição.

A Roda de Conversa falou sobre ansiedade. Este projeto tem como objetivo ouvir as experiências dos alunos sobre assuntos relacionados a saúde mental. É acompanhado pelos profissionais do NAP.

Em setembro, também tivemos o lançamento do Projeto Diálogos Contemporâneos. Voltado para todos os alunos da instituição, a palestra, organizada pela coordenação do curso de Direito, falou sobre a espiritualidade no cotidiano, nos turnos da manhã e da noite.

Para os alunos do curso de Medicina, a Faminas-BH oferece a locação da quadra de esportes do Clube Esportivo Universitário da UFMG e quadras, em Venda Nova. A Atlética do curso é responsável pela administração da parceria.

Em junho de 2018, A Associação Brasileira de Educação Médica – ABEM esteve em BH com o tema “Saúde Mental do Estudante de Medicina e Diretrizes Curriculares Nacionais”, oferecendo a médicos e professores dos cursos de Medicina do estado capacitação quanto ao tema. A Faminas-BH cedeu o espaço para realização deste evento. Coordenadores e professores foram capacitados para identificar possíveis mudanças de comportamento em sala de aula que necessitem intervenção das instituições.

Casos recorrentes e dados alarmantes

No Brasil, são 8 mil casos de suicídio por ano, uma média de 24 casos por dia, de acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS). Somente em Belo Horizonte, em um levantamento feito pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich), foram 137 casos de suicídio em 2013. Contagem contabiliza 23 no mesmo período.

De acordo com a ONG Centro de Valorização da Vida (CVV), que é especializada no atendimento a pessoas com propensão ao suicídio, na faixa etária de 15 a 29 anos, o suicídio é um fenômeno preocupante, sendo a segunda causa de mortes mais recorrentes entre os jovens.

Após casos de suicídios e tentativas noticiadas pelo Bhaz, envolvendo alunos da UFMG, em maio do ano passado, a universidade amanheceu pichada. Uma ex-aluna, por exemplo, desabafou. “Em 2012 eu atingi o meu limite. A faculdade me fazia doente. Meus professores não tinham o mínimo de empatia. Chegou a correr no Colegiado que eu tinha inventando o meu problema, simplesmente por ter sido vista no shopping. Este modelo de educação falido, esta batalha de egos na academia está, na melhor das hipóteses, gerando profissionais doentes”.

Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG é pichada após suicídios de maio de 2017 (Foto: Bhaz)

Você não está sozinho!

É sempre bom reforçar que todos nós estamos sujeitos a passar por situações difíceis. A psicóloga Michele Alves deixa um recado para todas as pessoas que esteja nessa situação: “Bom, gostaria de dizer para quem está vivenciando esse momento que você não está sozinho! Busque ajuda! É possível aliviar a dor e o vazio que você está sentindo e existem pessoas dispostas a te ajudar a encontrar e construir um outro caminho, através de um tratamento adequado! Busque ajude! Peça socorro! Não desista!”

Locais de ajuda:

CVV (Centro de Valorização da Vida) – Ligação gratuita / sigiloso – 188
Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) | Centro de Referência em Saúde Mental (CERSAM) – busque o serviço mais próximo a sua casa
Apoio psicopedagógico da sua universidade

Vitor Fernandes[email protected]

Sub-editor, no BHAZ desde fevereiro de 2017. Jornalista graduado pela PUC Minas, com experiência em redações de veículos de comunicação. Trabalhou na gestão de redes do interior da Rede Minas e na parte esportiva do Portal UOL. Com reportagens vencedoras nos prêmios CDL (2018, 2019, 2020 e 2022), Sindibel (2019), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).

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