Sob pressão, Fuad propõe redução do valor da outorga paga por construtoras à PBH e reacende discussão

Fuad Noman e construções em BH
Prefeito busca reduzir valor da Outorga Onerosa (Jonas Rocha + Amanda Dias/BHAZ)

Volta a entrar em discussão em Belo Horizonte a polêmica Outorga Onerosa do Direito de Construir, um valor cobrado das construtoras sobre a utilização de espaço para empreendimentos na capital. Cedendo às pressões do mercado imobiliário, o prefeito Fuad Noman (PSD) apresentou à Câmara Municipal o projeto de lei 508/23, que reduz o índice dessa cobrança. A medida, que entrou totalmente em vigor este ano, faz parte do Plano Diretor de BH.

A proposta reduz pela metade o valor a ser pago pelas empreiteiras, sob o argumento de que a mudança “alinha o valor da outorga aos preços praticados no mercado imobiliário”. A PBH alega que essa diminuição, na verdade, aumentará a arrecadação do município por reforçar o interesse das construtoras na cidade.

A administração municipal acredita em um crescimento de R$ 2 milhões para R$ 53 milhões anuais. Essa informação é questionada por especialistas do Observatório das Metrópoles, instituto que estuda e debate os desafios metropolitanos, e também por movimentos sociais pelo direito à moradia.

O assunto, que pode até soar muito burocrático, tem impacto direto na qualidade de vida dos moradores de BH. O dinheiro captado pela outorga é destinado a dois fundos, que ajudam a descentralizar os investimentos em infraestrutura ao redor da cidade e contribuem para a construção de habitações sociais.

Recursos da outorga são destinados a melhorias da infraestrutura em BH e também para construção de moradias (Amanda Dias/BHAZ)

A CMBH (Câmara Municipal de Belo Horizonte) vai discutir a proposta em audiência pública, no dia 20 de março. Foram convidados representantes da prefeitura, de movimentos sociais, do mercado imobiliário e técnicos da área.

Queda na arrecadação?

O professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG João Tonucci e o pesquisador do Observatório das Metrópoles Thiago Canettieri apoiam a manutenção da Outorga Onerosa da forma como ela funciona hoje. Os dois temem que a proposta de redução apresentada pela prefeitura tenha impacto negativo no Plano Diretor, aprovado em 2019 após anos de discussões.

Já representantes da AsBEA-MG (Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura de Minas Gerais) defendem a redução dessa cobrança.

Além da redução do valor, o PL 508/23, apresentado pelo prefeito Fuad Noman, também possibilita um desconto de 30% na outorga para pagamentos à vista, além do parcelamento em trinta e seis vezes.

Pela redução do valor da outorga

Os arquitetos Júlio Guerra Tôrres e Fernanda Basques, da AsBEA-MG, argumentam que a outorga atual torna mais difícil construir em Belo Horizonte, principalmente para empresas menores e em terrenos pequenos.

Segundo Fernanda Basques, desde o início da discussão sobre a medida, a associação se posiciona contra o valor determinado inicialmente pela PBH. “Nós antecipamos em 2019 que a prefeitura não arrecadaria nada com isso. É um valor que inviabiliza qualquer construção em terrenos menores, dando chance apenas para os grandes empreendimentos utilizarem o coeficiente máximo [pagando outorga]”, diz ao BHAZ.

A arquiteta sustenta que foi baixa a arrecadação anual no período de transição do Plano Diretor, no valor de R$ 2 milhões, segundo a própria prefeitura. A representante da AsBEA-MG ainda afirma que a redução proposta agora permanece insuficiente.

“Recentemente, começamos a fazer exercícios e chegamos à conclusão de que, mesmo com a redução, o valor ainda é alto. Já é um avanço, porque a ferramenta urbanística existe para gerar arrecadação, mas para terrenos menores e pequenas construtoras, ainda é um problema”, aponta.

O arquiteto Júlio Guerra Tôrres também afirma que a redução do valor proposta pela PBH melhora a situação, mas ainda não é o bastante. “A prefeitura viu que, nos três anos de transição, a compra de outorgas praticamente não existiu. Não adianta achar que vão arrecadar muitos recursos para habitações sociais subindo o preço, se ninguém comprar nada”, defende.

Para os dois representantes da AsBEA-MG, o coeficiente não deveria ser único para todos os terrenos da cidade, e sim determinado conforme as particularidades de cada área.

Contra a redução

Os pesquisadores do Observatório das Metrópoles, por outro lado, sustentam que a incorporação da Outorga Onerosa com o coeficiente único ao Plano Diretor de BH foi um processo discutido durante anos, desde a IV Conferência Municipal de Política Urbana, em 2014, e que deve ser mantido.

“Acima de tudo, este recurso vira uma fonte de arrecadação que é estruturante em todo o Plano Diretor. Derrubar um ou outro instrumento do plano desestrutura ele todo, por isso não pode acontecer. A outorga é uma garantia de que o plano funcione, e qualquer alteração muda o que foi discutido na conferência”, defende Thiago Canettieri.

A PBH argumenta que o PL que propõe a redução do valor da outorga não altera o Plano Diretor, já que ele prevê a mudança de uma lei própria que dispõe sobre a metodologia do cálculo do valor, e não uma mudança no texto do plano em si (leia mais abaixo).

O pesquisador João Tonucci, professor de Economia Regional e Urbana da UFMG, defende que não há evidências empíricas ou estudos que comprovem que a aplicação da Outorga Onerosa tenha impactos extremamente negativos sobre o mercado imobiliário, a construção civil ou sobre o preço final dos imóveis.

“A outorga incide sobre o valor do terreno, que é negociado entre os construtores e os proprietários. Ou seja, o valor que é pago à prefeitura vai ser negociado entre eles. Muito dificilmente ela terá um impacto sobre o preço final, que é muito determinado pela capacidade de pagamento do cliente. Na verdade, alguns estudos mostram que ela vai ter um efeito de redução do preço do terreno, o que pode, a longo prazo, ser bom para os próprios empreendedores”, afirma o especialista ao BHAZ.

Para ele, a redução proposta sinaliza uma acomodação do mercado imobiliário, propondo uma ampliação ainda maior dos descontos já previstos na lei atual. O professor ainda reforça a importância da destinação do dinheiro para os dois fundos.

“A arrecadação da outorga está vinculada a dois gastos muito ligados aos objetivos do Plano Diretor: as centralidades — lugares fora da área central que precisam de mais estrutura para comportar um fluxo maior de comércios, serviços, mobilidade — e o Fundo de Habitação, algo de que a cidade precisa desesperadamente, haja vista a quantidade de moradores em situação de rua, o aumento das ocupações urbanas e a dificuldade de viabilizar empreendimentos do tipo”, diz João Tonucci.

O que diz a prefeitura?

Em entrevista ao BHAZ, o secretário Municipal de Política Urbana, João Fleury, defendeu que a proposta de redução não consiste em uma alteração do Plano Diretor de BH. O PL 508/23, tecnicamente, prevê a alteração das leis 9.074, de 2005, e 11.216, de 2020 — esta última sendo uma das legislações que regulamenta o Plano Diretor.

Segundo o secretário, a PBH busca reduzir o valor da Outorga Onerosa porque, com a taxa atual, a previsão é de que a arrecadação seja baixa e insuficiente para competir com o mercado imobiliário. De acordo com ele, com os preços praticados hoje, os empresários do setor preferem negociar de forma privada, por meio da Transferência do Direito de Construir (TDC), a pagar pela outorga.

A TDC é um instrumento de política urbana pelo qual um proprietário de imóvel com relevância de preservação natural ou considerado um bem cultural pode transferir a um outro empreendedor ou utilizar em outro lugar o potencial construtivo de que teria direito pelo zoneamento no imóvel protegido.

A prefeitura afirma que, durante o período de transição do Plano Diretor nos últimos três anos, a arrecadação anual por meio do instrumento era de R$ 2 milhões. Com a redução proposta, a expectativa da própria administração municipal é que o valor alcance cerca de R$ 53 milhões anuais.

“Se nos últimos anos nós não arrecadamos quase nada, porque existe um outro mecanismo no mercado e não tinha como a prefeitura competir com isso, agora que o valor aumentou vamos arrecadar menos ainda. Fizemos isso para equilibrar o valor da outorga para que ela se torne competitiva, e para que possamos destinar mais recursos para os fundos da Centralidade e de Habitação Popular”, afirma o secretário.

O pesquisador João Tonucci, em contrapartida, apresenta outra perspectiva. “É verdade que existe uma competição, num primeiro momento, entre a TDC e a outorga, mas isso tende a se esgotar na medida em que a TDC tem uma oferta muito limitada, que não dá conta de toda a demanda por potencial construtivo adicional da cidade, e que tem regras muito específicas de onde pode ser gerada e usada”, avalia.

Questionado sobre a proposta de uma mudança na lei menos de um mês após ela passar a vigorar integralmente, depois de anos de discussão antes da aprovação do Plano Diretor, o secretário João Fleury lembra que a gestão atual da cidade não estava à frente da PBH nos últimos anos.

Ele também reconhece que a prefeitura não ouviu movimentos sociais ou outros especialistas fora da gestão para a tomada de decisão, mas ressalta que terá a oportunidade de discutir o assunto na audiência pública marcada na Câmara Municipal.

“O papel da prefeitura vai ser mostrar os números, os dados, e lembrar que esse dinheiro vai beneficiar a construção de moradias populares”, afirma o secretário.

Entenda a Outorga Onerosa

A Outorga Onerosa do Direito de Construir é um mecanismo que permite aos proprietários de imóveis em determinadas áreas da cidade adquirirem o direito de construir acima dos limites estabelecidos pela legislação, mediante o pagamento de uma contrapartida financeira à prefeitura. Ela é calculada por meio de uma fórmula que varia conforme a região em que a obra será feita e o tamanho do lote, entre outros fatores.

A criação da medida foi uma das propostas mais polêmicas à época da discussão do novo Plano Diretor de BH, em 2018 (relembre aqui). Isso porque empresários da construção civil alegam que a cobrança torna as obras mais caras e provoca um movimento de fuga do setor para outros municípios.

A fórmula para determinar o tamanho de uma construção é feita, conforme o Plano Diretor em vigor atualmente, multiplicando o Coeficiente de Aproveitamento (CA) pelo tamanho da área do terreno em metros quadrados. Antes, existiam terrenos com diversos coeficientes na capital, variando entre 1.0 e 5.0.

“A outorga coloca todos os terrenos da cidade em coeficiente 1.0, que é o básico. Para o empresário chegar ao máximo, ele tem de comprar o direito de construir da sociedade. Pois, quando ele adensa essa região, ele gera uma necessidade de mais serviços, como escolas, coleta de lixo, e por isso é preciso pagar”, explicou na ocasião a então secretária Municipal de Políticas Urbanas de BH, Maria Caldas.

A aplicação do instrumento é prioritária para determinados territórios, como terrenos adjacentes a eixos de transporte coletivo ou dentro da avenida do Contorno, por exemplo.

Desde a aprovação do Plano Diretor, em 2019, até fevereiro deste ano, as mudanças estavam em período de transição. Desde o dia 5 de fevereiro, a nova medida passou a valer integralmente, passando para 1.0 o coeficiente em qualquer terreno na cidade.

Outorga Onerosa
Entenda como funciona a Outorga Onerosa (Arte de Henrique Coelho/BHAZ)

O dinheiro captado pela outorga é destinado a dois fundos, que buscam descentralizar os investimentos em infraestrutura ao redor da cidade e contribuir na construção de habitações sociais:

  • Fundo de Desenvolvimento Urbano das Centralidades, que recolhe a outorga das regiões próximas de corredores da capital, como as avenidas Antônio Carlos e Cristiano Machado, e o recurso é reinvestido em infraestrutura na região;
  • Fundo Municipal de Habitação Popular, que usa o dinheiro arrecadado das outras regiões da cidade para investir em urbanização de favelas, atendendo às minorias e à população que vive em situação precária.

“A medida se insere numa família de instrumentos de recuperação de valorização imobiliária que são utilizados no mundo todo, inclusive em mais de cinco capitais brasileiras. É um atributo do poder público de conferir a possibilidade de algumas áreas da cidade se adensar mais do que outras”, detalha João Tonucci, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG e pesquisador do Observatório das Metrópoles.

Segundo o especialista, estudos apontam para uma série de benefícios que a Outorga Onerosa traz para as cidades “em termos de racionalização do uso do solo, de maior equidade dos direitos de construção entre diferentes proprietários, de distribuir melhor as oportunidades e, principalmente, o princípio de recuperação para a sociedade da valorização dos terrenos, causada pela ação do próprio poder público”.

Sofia Leão[email protected]

Repórter do BHAZ desde 2019 e graduada em jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Participou de reportagens premiadas pelo Prêmio Cláudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados, pela CDL/BH e pelo Prêmio Sebrae de Jornalismo em 2021.

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