Uma juíza de Belo Horizonte questionou uma vítima de assédio se ela já havia se relacionado com homem casado, durante uma audiência do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região. Especialistas ouvidos pelo BHAZ afirmam que não cabe à magistrada esse tipo de questionamento.
“Aconteceu de alguma mulher casada ir até a casa do reclamado dizendo que a senhora tinha mexido com o marido dessa pessoa?”, questiona a juíza Cleyonara Campos Vieira Vilela durante audiência.
A vítima é uma jovem de 21 anos, que saiu da casa da família, em Itabira, na região Central do estado, para trabalhar e morar na casa dos patrões, no bairro Liberdade, região da Pampulha, em BH. A identidade dela será preservada na reportagem.
De origem humilde, a jovem precisava de emprego e descobriu, por meio de um site de classificados, uma oportunidade. Segundo ela, no anúncio, uma família precisava de uma pessoa para fazer os trabalhos de casa e cuidar de duas crianças.
Um dos requisitos para a vaga, que pagava menos de um salário mínimo, era que a pessoa não morasse em Belo Horizonte. Dessa forma, a funcionária ficaria integralmente na casa dos patrões, à disposição.
“Conversei um dia com meus ex-patrões e na outra semana eles já foram lá [em Itabira] me buscar. Fui para a casa deles e passei a fazer os serviços. No início, era bem tranquilo”, começa a jovem entrevista ao BHAZ.
Início dos assédios
A jovem chegou à casa dos patrões em novembro do ano passado. Um local grande, com piscina, em região de alto padrão da capital mineira. Cerca de três meses depois, no início deste ano, os assédios começaram.
“Ele [o ex-patrão] trabalhava o dia todo, sempre almoçava fora. Mas aí ele começou a ficar mais dentro de casa, sempre perto de mim”, continua.
De acordo com a vítima, o homem aproveitava qualquer oportunidade para assediá-la. “Ele vinha e conversava no meu ouvido, passava a mão. Ele pedia para colocar fotos íntimas minhas no Instagram. Aí eu falava que não e ele ficava nervoso, começava a rir e debochar”.
Situação piora
A situação piorou após a jovem começar a frequentar os ambientes familiares e ir a outros eventos com a família, fora do horário de trabalho.
“Quando eu estava na piscina, ele ficava passando a mão, me alisando. E ele fazia isso abraçado com a mulher, com as crianças por perto. Até durante o trabalho ele queria que eu parasse para ficar com ele”.
Em outro momento, em um dia de jogo do Atlético, que a família foi assistir em um barzinho, os assédios continuaram. Mesmo na presença de muitas pessoas, a vítima explica que o homem continuava com os assédios, passando a mão nela nas oportunidades que tinha.
Em um clube no Jaraguá, na região da Pampulha, outra situação. “Ficava falando que queria ficar comigo, e mandava mensagens dando em cima de mim”.
‘Vontade de beijar sua boca’
Nas mensagens, que estão anexadas ao processo (veja abaixo), o homem diz que quer beijar a boca da vítima, mas em “segredo”. “Quero encher você toda de beijos, dos pés à cabeça. Pode ou não?”, diz uma mensagem.
A jovem responde dizendo que ele é “doente” e “precisa se tratar”. O suspeito pergunta se a vítima está “ficando doida”.
Contou para a mulher do ex-patrão
A vítima sofreu os assédios em silêncio durante um tempo, até que resolveu contar a situação para a ex-patroa. “Eu contei tudo para ela, mostrei as mensagens. No início, ela acreditou em mim. Mas logo depois já ficou do lado dele”, explica.
A jovem relata que a ex-patroa dizia que o marido era “assim mesmo”, que costumava assediar outras mulheres. “Falei com ela que aquilo não era um comportamento normal. Eu estava sentindo nojo de mim dentro daquela casa, mas precisava do dinheiro”.
Procura por advogado
Com a situação cada vez mais insustentável, ela resolveu sair do trabalho e voltar para a casa que morava antes com a mãe, em Itabira.
“Eu só contei para a minha mãe no dia que fui para a casa dela. Ela até achou que era coisa da minha cabeça. Comecei a printar essas mensagens, para minha mãe ver que o problema não era eu. Eu sei muito bem o que é trabalho, horário de entrar e sair. Terminava e ia direto para o meu quarto”.
O defensor Henrique Carvalho conta ao BHAZ que recebeu uma mensagem da vítima pelo celular da Carvalho Castro Meireles Sociedade de Advogados. “Assédio sexual é uma coisa que mexe muito com a gente, mas é algo difícil de provar”.
“Uma mensagem falando o que ele [ex-patrão] falou, dá para configurar o assédio sexual. Liguei para ela e ela começou a explicar. A família estava com medo, são de origem muito humilde. A mãe dela pediu para não entrar com a ação, porque eles moram na margem de uma BR. Ela já teve que ultrapassar o obstáculo, porque a família não queria que denunciasse”, explica.
Segundo o advogado, a cliente não teve carteira assinada, 13º, direito nenhum. “Ela recebia um salário que era menor que o mínimo. Ela fazia compras, creme de cabelo, unha, tudo no salão da patroa, sempre sendo descontado no salário dela. Era uma situação escravagista moderna”.
Audiência
Os advogados entraram com um pedido de indenização no TRT (Tribunal Regional do Trabalho) da 3ª Região, no valor de R$ 48.114,39. A audiência ocorreu em maio deste ano (assista na íntegra aqui).
Em determinado momento da audiência, a juíza Cleyonara Campos Vieira Vilela questiona se a mulher já havia tido um relacionamento com um homem casado. A pergunta foi feita após o advogado dos ex-patrões expor uma suposta situação.
“Já ocorreu de uma mulher casada ir na casa dos reclamados, procurando a jovem, dizendo que havia se envolvido com o marido dela”, disse o advogado, dizendo que inclusive a ex-patroa teve que intervir.
‘Irrelevante essa pergunta’
A juíza questiona: “Aconteceu esse fato?”. A advogada Camila Gonçalves, que fazia a defesa da vítima na audiência, interrompe a magistrada. “Excelência, pela ordem, irrelevante essa pergunta. O que isso tem a ver?”.
“Se eu entender que a pergunta é irrelevante, eu não faço. E eu já tinha começado a fazer, então estou achando que é relevante. Aconteceu de alguma mulher casada ir até a casa do reclamado dizendo que a senhora tinha mexido com o marido dessa pessoa?”, disse a juíza se dirigindo à vítima.
A jovem responde dizendo que a afirmação não é verdadeira. Ela explica que a situação toda não passou de um engano, mas a juíza insiste na pergunta. Mais uma vez, a magistrada é interrompida pela advogada. “Excelência, eu vou reiterar a irrelevância desse questionamento. O caráter da reclamante não está em jogo”.
“Doutora, se a senhora intervier mais uma vez, eu vou ter que aplicar à sua cliente multa. Aí agora fica a critério da senhora. A senhora não está intervindo só na pergunta do advogado, é na minha também. E o juiz faz a pergunta que ele quiser”, completa.
A vítima conta que ficou incomodada com a pergunta feita pela juíza. “Eu fiquei muito constrangida, nem soube responder na hora. Eu fiquei calada e depois disse que não. A minha ex-patroa teve acesso ao meu celular. Eu estava conversando com um tio meu. Ela pegou meu celular”.
Especialistas opinam
Hellom Lopes, advogado especialista em direito do trabalho e membro da Comissão de Direitos Sociais e Trabalhistas da OAB-MG, destaca que é importante dizer que a juíza deve se ater aos limites da lei.
“Ela tem que se ater às pretensões e àquelas argumentações que foram trazidas pela defesa em resistência às pretensões da parte autora. No caso, a postura do juiz deve ser de uma ação técnica, ou seja”, começa.
Para a advogada criminalista Paola Alcântara, não cabia à juíza tal questionamento. “Essa pergunta é totalmente irrelevante, até porque se a parte que está sendo reclamada, se considerasse essa pergunta pertinente, teria que justificar. Explicar qual é o motivo, a relação da pergunta com o que está sendo objeto do procedimento trabalhista”.
“A postura da juíza foi totalmente contrária ao que se espera de um magistrado. O juiz não é parte em procedimento nenhum. Ele faz controle de legalidade do ato. Ele vê o que uma parte e a outra estão falando e, a partir dessas duas posições, chamado contraditório, é que se vai efetivamente decidir”, continua a advogada.
A especialista ainda diz que a juiza se sentiu incomodada pela intervenção que a advogada fez naquele momento. “Isso é muito claro, muito visível. Num contexto de assédio sexual, e num contexto trabalhista, eu acho que ela deveria ter contextualizado porque ela considera relevante, para evitar uma revitimização”.
‘Juíza se excedeu’
Sobre a aplicação de multa o advogado da OAB-MG diz que o juiz pode sim aplicar uma multa de litigância de má fé. “Isso caso ele entenda que a parte esteja escondendo algo que saiba, para maquiar a verdade real do que acontecia”.
“É importante destacar que a postura do magistrado é de se ater aos limites do processo. E os limites do processo se encontram dentro daquilo que está sendo pretendido pela parte autora e daquilo que está sendo trazido como defesa da parte ré. É uma atuação técnica e deve se limitar a isso”, prossegue.
Paola Alcântara ressalva que a multa pode ser aplicada, “desde que seja demonstrado essa interrupção, esse tumulto procedimental”. “Fazer essas intervenções da forma que a advogada fez, aí não, pois é o próprio direito do advogado. Inclusive ela usou uma prerrogativa, que consta no estatuto do advogado, que é usar-se da palavra, ‘pela ordem’. É a expressão que nós, advogados, temos assegurado quando é para alegar uma questão de ilegalidade”.
“A minha análise é que a juíza parece ter levado o subjetivismo dela para o procedimento. A intervenção que a advogada fez foi correta, porque falar sobre a personalidade em nada afetaria as questões trabalhistas, que são de ordem objetiva. E isso não depende do caráter da reclamante. Acredito que a magistrada se excedeu, considerando a demanda”, completa.
TRT-3 se pronuncia
Ao BHAZ, o TRT-3 informa que a juíza não vai se pronunciar em relação a esse tema. “Ela reforça que o que tinha a dizer sobre isso está nos autos do processo, inclusive na sentença exarada, que é público e pode ser acessado por qualquer um”.
“O que temos a dizer sobre o caso é que a juíza prolatou uma sentença reconhecendo em parte os pedidos da reclamantes, não reconhecido e assédio sexual. A reclamante recorreu da decisão para o segundo grau, que manteve a decisão da juíza”, completa.
Procurado pelo BHAZ, o ex-patrão da jovem diz que não vai se manifestar em relação ao caso.
Defesa vai recorrer ao TST
Na fundamentação da sentença, a juíza desconsidera o assédio. “Não há nos autos qualquer elemento a evidenciar a ocorrência do alegado assédio sexual”.
Sobre os prints do WhatsApp, a magistrada diz que “se extrai apenas conversas da reclamante com terceiro (seu namorado), atividades domésticas a exemplo de guardar compras de supermercado ou orientações sobre o cuidado com roupas e vídeos da reclamante em momentos de descontração com os réus e seus filhos”.
A juíza apenas deferiu o acerto da jovem e mandou os ex-patrões assinarem a carteira dela. O tribunal reformou a sentença e adicionou à condenação a rescisão indireta, que é quando a empregada força a empresa a pagar o acerto completo dela por irregularidades.
No tribunal o processo já está esgotado, agora a defesa vai enviar o caso para o Tribunal Superior do Trabalho, em Brasília (DF).