Do subúrbio para a cena: Conheça Linguini e Vhoor, beatmakers de BH que lançam hoje ‘Total 90’

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Beatmakers estão contribuindo para o cenário musical atual de Belo Horizonte (Moisés Teodoro/BHAZ)

Nerds do subúrbio, “low profiles”, beatmakers, usuários assíduos do SoundCloud, e moradores dos extremos de Belo Horizonte. Esses são os adjetivos que o rapper Linguini e o produtor Vhoor possuem em comum, e que ambos usam para se descreverem melhor. Além de admirarem o trabalho um do outro, os dois se unem pelo laço da amizade, e decidiram ligar extremos opostos da capital – Barreiro e Venda Nova – no lançamento da música “Total 90”.

Conheça Linguini

Nascido e criado no bairro Marilândia, Vinícius Fernandes de Oliveira, 20, cria letras de rap e produz instrumentais, por meio do pseudônimo Madling. Entretanto, é pelo apelido “Linguini” que todos o conhecem, o que o levou a usar a alcunha quando se apresenta como rapper. Além de mergulhar no universo musical, Linguini cursa jornalismo na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e estagia na área.

Linguini (Moisés Teodoro/BHAZ)

No início do ano passado, Linguini se aventurou no lançamento independente de um álbum, “O Imperfeito Cozinheiro das Rimas Deste Mundo”. Já durante a pandemia, o artista apresentou um novo projeto: o EP “Pique Pitbull”, que rendeu uma das músicas mais populares dele no Spotify, e que também tem o mesmo nome. Além desses trabalhos, o beatmaker já lançou outros singles, e para compreender todo o seu processo criativo, é necessário voltar, aproximadamente, 20 anos atrás.

“Eu tive uma infância bem tranquila, sempre acabei passando mais tempo perto do ambiente de casa pelo fato dos meus pais saírem para trabalhar sempre, e se eu não passasse em casa, passava com a minha vó lá em Sarzedo. Sempre tive um apoio familiar, e cresci com algumas influências ligadas ao futebol e ao vídeo game que eu observo que são referências que perduram até hoje. Coisas de cultura que eu consumia quando eu era criança até hoje reverberam nas coisas que eu faço”.

Cultura do PlayStation na música

É facilmente perceptível como a cultura absorvida por Linguini no início de sua vida está presente de uma maneira forte em seu trabalho. Na faixa “Fifa Street 2006”, contida no EP Pique Pitbull, a referência ao jogo de PlayStation tão marcante na infância de Vinícius exemplifica o saudosismo à época. Ainda nessa canção, o rapper canta o trecho “grande turista usa a cultura de surf”, em memória ao game Gran Turismo, que Linguini diz ter jogado.

Linguini, quando era “só Vinícius”, jogando vídeo game com os primos (Vinícius Fernandes/Arquivo Pessoal)

Também foi na infância, como grande parte dos artistas, que a música começou a ser para o jovem algo que fosse além da mera apreciação. “Eu pegava as coisas daqui de casa e fazia ritmo com tudo! A gente tinha um móvel aqui em casa que eu lembro da imagem dele até hoje, e ele era todo trincado na borda de tanto que eu pegava as colheres da casa e fazia aquilo de bateria”, conta.

Vinícius no palco (Vinícius Fernandes/Arquivo Pessoal)

Primeiro instrumento: bateria

O pai, Cláudio Fernandes de Oliveira, é daqueles tios que arranham no violão quando tem alguma comemoração em família – como diz o próprio filho -, e também foi um dos primeiros a reconhecer a relação de Linguini com a música. “Meu pai sempre brincava que eu tinha ritmo”, relembra Vinícius, revelando que, aos 10 anos, o pai o presenteou com uma bateria.

O instrumento deu para Vinícius a expectativa de já desenhar um caminho no universo da música, no entanto, o “rolê flopou”, nas palavras dele. Seus pais não tinham tempo de levá-lo para as aulas de bateria, por conta da rotina de trabalho, e o irmão mais novo de Linguini acabou rasgando o instrumento. “Aí eu desanimei”, resume.

Mas Linguini não parou não, só deu um tempinho. Ele continuou consumindo músicas de todos os tipos, e fazendo pesquisas sobre os múltiplos gêneros. “Tive a fase de saber tudo o que tocava na Jovem Pan, de ser o cara que sabia dos pops, tive a fase que todo mundo passou de escutar rock pelo menos para saber qual é que é, do próprio funk… Sempre fui uma pessoa muito diversa nesse sentido, e quando eu fui ficando mais maduro tudo isso juntou”.

CEFET-MG entra em cena

Foi aos 15 anos que o elemento que mudaria completamente a vida de Linguini entrou em cena: o CEFET-MG. O Centro Federal de Educação Tecnológica foi a escola que o jovem cursou o Ensino Médio, palco de sua primeira batalha de rimas. Foi lá também que adquiriu o apelido em referência à animação da Disney com a Pixar, o filme Ratatouille.

“Eu comecei a conhecer a cidade além do que eu conhecia, comecei a ir para o Centro, e eu brincava com os amigos de rimar. Estava popularizando esse rolê de batalha, só que ninguém ali sabia rimar de fato. Meus colegas me incentivavam a participar de batalhas, e aí na primeira que teve no Cefet eles me empurraram para participar, e na primeira batalha da minha vida eu fui campeão”, relata Linguini.

Batalha de rimas de Vinícius, no CEFET-MG (Vinícius Fernandes/Arquivo Pessoal)

A partir de então, Linguini começou escrever mais rimas, e a situação das ocupações nas escolas públicas em 2016 com o cenário político do Brasil, que apresentava o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, inspiraram o artista a mergulhar na composição. Assim, ele e mais três amigos do CEFET-MG, Moki, Donatello e Vitin, lançaram a música A.C.A.D, que não está mais disponível nas plataformas digitais.

EP ‘Cobrança’

“No começo de 2017 eu pensei em fazer um EP e reunir nele letras de 2016 e de 2017, até que em julho de 2017 eu comecei a gravar esse EP para soltar ele em 5 de janeiro de 2018”. O EP “Cobrança” existe somente na versão física, que Linguini confeccionou e distribuiu 100 cópias limitadas para pessoas do ciclo social. O feedback foi positivo. “Era o que eu precisava para quebrar a barreira de ‘será que A.C.A.D foi um ponto fora da curva ou será que minhas coisas estão legais de verdade?'”.

EP “Cobrança” (Vinícius Fernandes/Arquivo Pessoal)

Conceito do primeiro álbum vem da literatura

Ali em 2018, o último dos anos de Vinícius Fernandes no CEFET-MG, a ideia para o primeiro álbum surgiu durante uma aula de literatura que ele pensava em matar naquele dia. “Nessa aula, a professora estava falando sobre modernismo, e mencionou o livro ‘O perfeito cozinheiro das almas deste mundo’. O livro era um diário que ficava dentro do apartamento do Oswald de Andrade, e funcionava como um espaço livre. A galera escrevia poema, recadinho um para o outro etc”.

“O meu corre é muito disso, é independente, é uma construção coletiva assim como o livro. E na época eu estava escutando muita música brasileira, misturando elementos de fora mas criando elementos únicos, criando coisas diferentes do que estavam fazendo, e é basicamente o que o movimento modernista fez. Essa aula em si foi tudo o que eu precisava para criar O Imperfeito Cozinheiro das Rimas Deste Mundo”.

Linguini & Vhoor

Depois de Cobrança, O Imperfeito Cozinheiro das Rimas Deste Mundo, e Pique Pitbull, Linguini entra numa nova fase musical na companhia de Vhoor, produtor belo-horizontino e amigo. No último dia 30 de abril, ambos lançaram uma colaboração intitulada “Total 90”, cujo clipe estreia hoje (13). Para os dois, o featuring serve para oficializar a parceria musical dos beatmakers, que vêm tentando liberar um trabalho juntos há alguns anos.

Além de toda a assimilação da cultura do início de sua vida que Linguini faz em suas músicas, Vhoor é mais uma das fontes de inspiração para o artista. Em 2017, os dois se conheceram por meio de um amigo em comum, e a identificação foi instantânea. “Achei louco ele conhecer tudo o que eu falava e vice-versa, realmente foi esse lance de identificação, eu perguntava se ele conhecia tal galera e ele conhecia, e eram pessoas que eu admirava”, conta Vinícius.

“A gente começou a trocar ideia, ele me pediu alguns beats, e eu achei foda ter outra pessoa em BH que partilhava do mesmo mundo que eu”, relembra Vhoor. E a amizade entre os dois começou assim: troca de referências, beats e rimas, e acabou resultando em várias músicas juntos, mas que se perderam. Vhoor assume: “Perdi vários projetos, já aconteceu do meu computador queimar, estragar, toda vez que a gente ia lançar alguma coisa”.

Linguini e Vhoor (Moisés Teodoro/BHAZ)

Conheça Vhoor

A perda das canções está longe de representar algum traço de irresponsabilidade de Vhoor com o próprio trabalho. O produtor de música eletrônica – música que é criada ou modificada por meio de equipamentos eletrônicos – vem trilhando sua carreira desde os 18 anos. Agora, aos 23, Victor Hugo de Oliveira Rodrigues tem suas músicas tocando em comerciais da Nike, da Adidas, e em canais do YouTube. E nada menos do que um álbum em colaboração com o rapper belo-horizontino FBC.

Vhoor (Moisés Teodoro/BHAZ)

Vhoor morou parte de sua infância na avenida Vilarinho, no bairro Venda Nova, mas teve que se mudar para o Canaã por conta dos recorrentes problemas de enchentes da região. Filho de músicos, o produtor sempre teve o elemento presente em sua vida, mas foi só na adolescência que considerou trabalhar no ramo. “Meus pais tocavam na noite, seja em barzinho, seja em casamento, para poder complementar a renda daqui de casa”, recorda Victor.

Pai de Vhoor tocando violão para ele (Victor Hugo/Arquivo Pessoal)

Primeiro instrumento: violão

Mesmo com a música como profissão vindo a ser considerada somente na adolescência, Vhoor se apaixonou por ela desde pequeno, justamente pelo fato de ver seus pais trabalhando com a arte. “Aqui em casa sempre teve muita música, rádio ligado o tempo todo”, afirma o artista. Conforme o jovem foi crescendo e despertando interesse por canções, o pai o ensinou a tocar violão.

“Quando eu aprendi a tocar violão, comecei a tocar na igreja toda quarta-feira, e isso foi uma coisa que me ajudou bastante a aprender mesmo a música de verdade, inclusive na questão dos ensaios, me ensinou a ter uma responsabilidade com a música”. Já com 16 anos, a produção entrou na vida de Vhoor, inicialmente, apenas como um hobby.

“Um amigo meu falou: ‘Se você gosta tanto de música, por que você não faz as suas próprias?’, aí eu falei ‘ah não, não vou mexer com isso não’, e acabei baixando o programa”. Vhoor se encantou pelo universo da produção musical e da música em si, e pela maneira como ela toma forma por cada lugar que passa, como ele diz. Isso abriu as portas da mente de Victor Hugo para começar um projeto que mesclava a música eletrônica com o hip hop e elementos do funk.

Pais desempregados e cobrança

Victor tinha muita vontade de ajudar em casa. Ele relembra que, nessa mesma época, em 2018, o país estava passando por uma crise econômica e os pais dele estavam desempregados. “Eles me viram como uma oportunidade de aumentar a renda daqui de casa. Então mesmo que não fosse uma imposição, tinha aquela pressão no sentido de ‘está na hora de você ajudar aqui em casa também, você já está saindo da escola. Ou então você faz um cursinho’”.

O jovem fez um curso pré-vestibular com a ajuda dos padrinhos, mas não conseguiu passar no que desejava, que era economia. Nesse momento, como um típico pai preocupado, Carlos Alberto Rodrigues questionou o filho: “Qual vai ser agora?”. Vhoor pediu ao pai que lhe desse o prazo de um ano para tentar viver de música e apostar que o projeto daria certo.

No meio de todos esses acontecimentos, Vhoor já tinha algumas produções publicadas na plataforma SoundCloud, que alcançavam até mesmo pessoas em lugares fora do Brasil. “Eu não tinha nem parâmetro para o que eu poderia fazer ou aonde eu poderia chegar, ainda mais porque a cena da música digital era uma coisa que praticamente não existia naquela época e hoje está engatinhando ainda, então foi muito complicado”.

SoundCloud divide as águas

Se Vhoor não sabia por onde começar, o SoundCloud definitivamente mostrou para ele. O produtor e DJ carioca Omulu ouviu as produções de Victor na plataforma e decidiu convidá-lo para tocar numa festa em Belo Horizonte, chamada Arrastão. Vhoor, que na época tinha 18 anos, nunca havia tocado em um evento antes, mas topou o desafio.

Recorrer a um amigo próximo foi a solução que Vhoor encontrou. “Velho, pelo amor de Deus, me ensina a tocar, porque eu preciso tocar nessa festa”, disse o produtor, relembrando o dia que pediu a um amigo que lhe ensinasse a mexer em uma controladora de DJ. “Eu lembro que ele me emprestou a controladora, e eu fiquei um mês treinando e com um frio na barriga enorme”.

No final das contas, tudo acabou dando certo, e esse foi o pontapé inicial para a carreira profissional de Vhoor com a música eletrônica. “Algumas outras festas que me viram tocar começaram a me chamar para tocar também, até mesmo para fazer uma festa minha, e as coisas começaram a acontecer. Eu comecei a receber uma certa remuneração pelo trabalho que eu meio que já fazia de graça, e isso foi muito bom porque deu para ajudar aqui em casa”.

Vhoor tocando pela primeira vez, na festa “Arrastão”, em Belo Horizonte (Victor Hugo/Arquivo Pessoal)

Comerciais internacionais e a história continua

Em paralelo, as produções de Vhoor começaram a ser tocadas em comerciais internacionais, e isso obrigou o produtor a aprender a mexer com as músicas de forma mais burocrática para monetizar o trabalho. Em 2018, o artista lançou seu primeiro álbum no Spotify, o “Baile & Beats”. As criações de Victor começaram mesclando música eletrônica de gueto com música eletrônica global, gêneros que, segundo ele, estão presentes no nosso dia a dia e são sua paixão.

Baile e afins

Na bagagem, Vhoor também possui os EPs “Brazillian Boogie”, “Baile & Trill” e “MPBeats”, e os álbuns “Baile & Vibes”, “Baile & Drip”, “Ritmo”, e “Outro Rolê”, sendo o último em parceria com FBC. É perceptível a relação que o produtor possui com os termos relacionados à festa e dança, e ele deixa claro que a inspiração para o termo “baile” saiu do tagueamento do SoundCloud usado para definir as músicas de funk.

“Acho que essa palavra engloba tudo o que tem a ver com essa parada do baile funk, e uma coisa diferencial dos produtores brasileiros é a nossa noção de ritmo. O brasileiro tem uma forma diferente de ‘trampar’ o tempo na música”, destaca. Nos trabalhos de Vhoor é possível ouvir trechos de artistas conhecidos cantando, e que muitas vezes não são creditados na música. Segundo ele, essa é uma cultura de montagem do próprio funk, usada há muitos anos.

Ele conta que diversos artistas do funk utilizam a estratégia de colocar na internet trechos de si mesmos cantando alguma letra, em Acapella, sem cobrar direitos autorais, para que suas vozes sejam difundidas. Vhoor segue esse padrão em suas criações, utilizando trechos do funk, tanto as rimas quanto sampleando os beats, e consegue, através disso, criar um estilo único.

Total 90

A criação e a produção de “Total 90” é o resumo de toda a trajetória de Vhoor e Linguini até aqui. Desde as referências da infância, até os encontros e amizades na adolescência e o profissionalismo adquirido depois dos últimos anos de trabalho, tudo isso se funde no rap cantado por Vinícius Fernandes e produzido por Victor Hugo. O processo não foi diferente de fluido e carregado de sintonia, algo já esperado se tratando de duas pessoas que se entendem tanto.

“O Liguini tinha me mandado esse projeto como Acapella, e ele ficou muito tempo na minha cabeça, eu pensava ‘o Linguini realmente foi muito foda nessa letra, curti demais’. E aí eu fui mexendo, pegando varias referências que eu tinha na época, tanto do trap quanto do grime, e encaixou tudo como um quebra cabeça”, explica Vhoor.

Linguini revela que escreveu a música em seu quarto, assim como suas outras criações, e que comemorou a cada rima que fazia. “Eu me inspirei em várias referências do universo esportivo, tem referência ao Kobe Bryant, à chuteira Total 90, e tem o sentido de levar a vida como um esporte. Porque ao mesmo tempo que tem gente jogando com você, tem outros querendo te derrubar”, diz.

Linguini e Vhoor (Moisés Teodoro/BHAZ)

Clipe mescla dança, games e Belo Horizonte

Os garotos foram contemplados pela Lei Aldir Blanc, que prevê o auxílio financeiro para o setor cultural, e com isso conseguiram gravar um clipe para “Total 90”. Indo contra os padrões, Vhoor também aparece no videoclipe, que conta com a presença de dançarinos da cena de Belo Horizonte. A música “Total 90” está disponível em todas as plataformas de streaming, e o clipe teve sua estreia na noite desta quinta-feira (13). Confira:

Edição: Roberth Costa
Andreza Miranda[email protected]

Graduada em Jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2020. Participou de duas reportagens premiadas pela CDL/BH (2021 e 2022); de reportagem do projeto MonitorA, vencedor do Prêmio Cláudio Weber Abramo (2021); e de duas reportagens premiadas pelo Sebrae Minas (2021 e 2023).

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