Entenda o que é a PEC que pode ‘privatizar praias’ no Brasil

Assunto divide opiniões no Senado Federal (Tânia Rêgo/Agência Brasil)

A tramitação de uma Proposta de Emenda à Constituição que pode “privatizar as praias” dividiu opiniões nas redes sociais durante a última semana. A PEC 3/2022 chegou a ser o tema central de uma troca de farpas entre Neymar e Luana Piovani. Mas, afinal, o que é a PEC das praias e quais efeitos ela pode ter na vida dos brasileiros?

O Senado Federal voltou a discutir no último dia 27 o texto que transfere a propriedade dos terrenos do litoral brasileiro, hoje sob o domínio da União, para estados, municípios e proprietários privados. A PEC é de autoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) e havia sido aprovada pela Câmara dos Deputados em fevereiro de 2022. A proposta, no entanto, estava parada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado desde agosto de 2023.

O projeto gera divergências. Organizações ambientalistas alertam que a aprovação da proposta pode comprometer a biodiversidade do litoral brasileiro, enquanto o relator defende que a mudança é necessária para regularizar as propriedades localizadas nos terrenos da Marinha e que as áreas geram prejuízos aos municípios.

A polêmica em torno do assunto cresceu após a discussão entre Luana Piovani e o jogador Neymar nas redes sociais. Entenda abaixo do que se trata a PEC das praias.

O que é a PEC das praias?

A PEC 3/2022 transfere a propriedade dos terrenos de marinha do litoral brasileiro, hoje sob o domínio da União, para estados, municípios e proprietários privados.

Para realizar a mudança, a PEC propõe a exclusão do inciso VII do artigo 20 da Constituição, que afirma que os terrenos de marinha são de propriedade da União, transferindo gratuitamente para os estados e municípios “as áreas afetadas ao serviço público estadual e municipal, inclusive as destinadas à utilização por concessionárias e permissionárias de serviços públicos”.

Para os proprietários privados, o texto prevê a transferência mediante pagamento para aqueles inscritos regularmente “no órgão de gestão do patrimônio da União até a data de publicação” da Emenda à Constituição. Além disso, autoriza a transferência da propriedade para ocupantes “não inscritos”, “desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos cinco anos antes da data de publicação” da PEC.

Ainda segundo o relatório, permanecem como propriedade da União as áreas hoje usadas pelo serviço público federal, as unidades ambientais federais e as áreas ainda não ocupadas.

PEC pode privatizar as praias?

Para entender se a proposta é capaz de privatizar as praias, é necessário compreender o conceito de “terrenos de marinha”.

Os terrenos de marinha são terras da União no litoral, situados entre a linha imaginária da média das marés registrada no ano de 1831 e 33 metros para o interior do continente. É uma faixa costeira considerada estratégica pelo governo. Também são consideradas nessa condição as margens de rios e lagoas que sofrem influência das marés. Apesar do nome, terrenos de marinha nada têm a ver com a força armada Marinha. São determinados por estudos técnicos, com base em plantas, mapas e documentos históricos.

O conceito foi instituído ainda no tempo do Império, com a vinda de Dom João VI e da família real. As terras eram destinadas à instalação de fortificações de defesa contra invasões marítimas. A medida de 15 braças, equivalente a 33 metros, era considerada a largura suficiente para permitir o livre deslocamento de um pelotão militar na orla e assegurar o livre trânsito para qualquer incidente do serviço do rei e defesa do país. Também era um espaço estratégico para o serviço de pesca, já que era uma faixa onde os pescadores puxavam as redes. Hoje, a principal legislação sobre o assunto é o Decreto-lei 9.760, de 1946.

(Reprodução/Ministério da Gestão e Inovação)

Para Ana Paula Prates, diretora do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente (MMA), a mudança não privatiza diretamente as praias, mas pode levar ao fechamento dos acessos às áreas de areia.

“É bom deixar claro que a PEC em si, com essa coisa de terminar a figura dos terrenos de Marinha, ela não vai automaticamente privatizar praias. Mas a questão é o acesso às praias. Aí sim, que podem ser privatizadas, porque esses terrenos todos que ficam a jusante das praias forem privatizados, você começa a ter uma privatização do acesso às praias, que são bens comuns da sociedade brasileira”, explica.

Nesse sentido, o mercado imobiliário poderia adquirir as áreas para uso comercial. Dessa maneira, hotéis e resorts poderiam construir na beira do mar, impedindo o acesso da população às praias.

Riscos climáticos

Em audiência pública promovida pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), especialistas alertaram para riscos ambientais da proposta de emenda à constituição.

A coordenadora-geral do Departamento de Oceano e Gestão Costeira do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marinez Eymael Garcia Scherer, informou que a área de segurança nos terrenos de marinha em outros países costuma ser maior que a adotada no Brasil (33 metros). Ela citou o exemplo de Portugal (50 metros), Suécia (100 a 300 metros), Uruguai (150 a 250 metros) e Argentina (150 metros). A PEC pode significar, na visão de Marinez, um risco de ônus para toda a sociedade e de perdas na qualidade de vida.

Marinez Scherer também alertou que o nível do mar vem subindo nos últimos anos. Esse aumento, ressaltou, avança exatamente sobre a área de segurança e dos terrenos de marinha. Ela disse que essas áreas, que normalmente têm manguezais, restingas e falésias, são consideradas áreas de preservação ambiental permanentes.

Segundo Marinez, se houver perdas nessas estruturas naturais, haverá perdas de bem-estar humano e perdas econômicas. Ela citou o exemplo recente do Rio Grande do Sul e disse que as perdas econômicas atingem toda a população. “Não é à toa que essas áreas são consideradas áreas de conservação permanente. São assim porque são importantes para a segurança humana e para o bem-estar humano”, pontuou.

Impacto social

A secretária-adjunta da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União no Ministério da Gestão e da Inovação dos Serviços Públicos, Carolina Gabas Stuchi afirmou que o domínio da União sobre a faixa da costa marítima é essencial para a soberania nacional e para o equilíbrio do meio ambiente. Ela ainda disse que, se a PEC fosse aprovada hoje, haveria “um caos administrativo”, porque a estimativa é que existam cerca de 3 milhões de imóveis não registrados ocupando essa faixa.

De acordo com Carolina, a proposta extingue a faixa de segurança e permite a transferência do domínio pleno, o que poderia agravar a questão fundiária relacionada a povos tradicionais. Ela acrescentou que outros países estão recomprando as áreas de praia que haviam sido privatizadas tempos atrás.

“A PEC favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas, tornando esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos extremos. A proposta ainda permite a privatização e cercamento das praias, trazendo impacto no turismo e na indústria de pesca”, alertou.

Governo é contra a PEC das praias

O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, afirmou, nesta segunda-feira (3), que o governo é contra a proposta que permite a privatização de áreas de acesso às praias brasileiras e vai trabalhar para suprimir esse trecho no projeto que tramita na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. “Do jeito que está a proposta, o governo é contrário a ela”, disse, após reunião com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Palácio do Planalto.

“O governo é contrário a esse programa de privatização das praias brasileiras que vai cercear o acesso da população brasileira às praias e criar verdadeiros espaços privados, fechados. Vamos trabalhar contrário na CCJ, tem muito tempo ainda para discutir na CCJ, vamos explicitar”, reforçou.

“Acho que a sociedade pode participar ativamente, vai participar ativamente. Foi feita a audiência pública que, de uma certa forma, teve uma coisa positiva que deu visibilidade ao tema. Teve até Luana Piovani e Neymar discutindo sobre isso”, acrescentou Padilha.

Defesa

O senador Flávio Bolsonaro defende, em seu relatório, que a mudança é necessária para regularizar as propriedades localizadas nos terrenos de marinha. “Há, no Brasil, inúmeras edificações realizadas sem a ciência de estarem localizadas em terrenos de propriedade da União”.

Segundo Flávio, “os terrenos de marinha causam prejuízos aos cidadãos e aos municípios. O cidadão tem que pagar tributação exagerada sobre os imóveis em que vivem: pagam foro, taxa de ocupação e IPTU. Já os municípios, sofrem restrições ao desenvolvimento de políticas públicas quanto ao planejamento territorial urbano em razão das restrições de uso dos bens sob domínio da União”.

O senador fluminense argumenta ainda que a origem do atual domínio de marinha sobre as praias foi justificada pela necessidade de defesa do território contra invasão estrangeira, motivo que não mais existiria, na visão do parlamentar.

“Atualmente, essas razões não estão mais presentes, notadamente diante dos avanços tecnológicos dos armamentos que mudaram os conceitos de defesa territorial”, disse no parecer da PEC.

Isabella Guasti[email protected]

Jornalista graduada pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2021. Participou de reportagem premiada pela CDL/BH em 2022 e também de reportagem premiada pelo Sebrae Minas em 2023.

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