Plano de Parto: Relato de doula viraliza e acende alerta sobre necessidade de ‘empoderamento’ de gestantes

plano de parto
O Plano de Parto é um documento em que a mulher define quais procedimentos permite ou não que sejam feitos no momento do parto (FOTO ILSUTRATIVA: Banco de imagens/Unsplash)

O pedido de uma profissional que presta assistência a gestantes no momento do parto viralizou nas redes sociais e acendeu um alerta importante nesta semana. No post, a doula Gabriela Dantas ressalta a importância da formalização do chamado plano de parto. A publicação chamou atenção e gerou curiosidade, já que o plano citado se revelou desconhecido por boa parte das mulheres.

“Atenção, gestantes: REGISTRE SEU PLANO DE PARTO EM CARTÓRIO! Plano de parto é um documento, a partir do momento que o hospital/casa de parto recebe um documento onde está listado tudo o que você permite e não permite que seja feito no seu corpo e com o seu bebê, é dever do hospital responder caso não cumpra com o seu desejo”, diz o post de Gabriela. 

O plano de parto, conforme explicou a doula, é um documento em que a gestante define quais procedimentos a equipe médica está ou não autorizada a fazer no momento do parto. Diante das dúvidas que surgiram após a repercussão, a profissional publicou um vídeo no Instagram em que explica mais detalhes sobre o que é o documento.

“O Plano de Parto nada mais é do que um documento validado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) para ser utilizado no momento de internação de uma pessoa que esteja em trabalho de parto”, explica. “Ele serve para que a instituição entenda que você tem um corpo e que você tem desejos em relação a como você quer que seja o seu trabalho de parto e o nascimento do seu bebê”, acrescentou Gabriela. 

‘Nem sabia que isso existia’

Em apenas três dias, o post da profissional de saúde no Twitter já somava mais de quatro mil compartilhamentos e dezenas de respostas. Dentre os comentários, muita gente questionou como esse planejamento deve ser feito pelas gestantes.

E justamente por ser um assunto tão pouco falado, a comerciante Ingred Costa só soube da importância do Plano de Parto em sua segunda gravidez. A jovem é moradora de Crucilândia, na região Central de Minas, e disse que teve um contato maior com o tema pelas redes sociais.

“No primeiro [parto], há dez anos, eu nem sabia que isso existia, eu tinha só 18 anos. Conheci através da internet, comecei a seguir algumas páginas sobre grávidas. Foi quando surgiu a vontade de fazer um parto humanizado em Belo Horizonte, porque no primeiro eu sofri violência obstétrica”, conta em conversa com o BHAZ.

Mesmo na capital, Ingred conta que não encontrou informações acessíveis para elaborar o seu Plano de Parto. Na maternidade em que escolheu ter a filha, hoje com três meses de idade, ela lamenta não ter recebido nenhum suporte nesse sentido.

“Eles disseram que eu deveria fazer esse plano junto com a minha médica do pré-natal, aquele ‘sonho americano’, né? Porque a minha médica nem tocou no assunto”, lembra a jovem. 

Como é feito o plano de parto?

Sem o amparo que esperava, Ingred decidiu seguir com o plano por conta própria – e não se arrepende. “Eu mesma procurei vários modelos na internet porque eu não sabia como tinha que ser feito. Fiz o meu e pedi pro meu marido assinar”, explica.

Ao BHAZ, a integrante do coletivo e associação Nascer Direito e advogada Ana Dulce Fernandes, explica que o plano de parto é construído a partir de informações do prontuário da paciente, levando em consideração o histórico dela e do bebê.

“É de suma importância que as mulheres se preocupem também com essa parte. É legal preparar o enxoval, o chá de bebê, mas é importante que as mulheres fiquem atentas aos direitos delas enquanto grávidas”, pondera.

Em Belo Horizonte, gestantes podem utilizar um modelo de Plano de Parto disponibilizado pela Secretaria Municipal de Saúde na Cartilha da Gestante. O documento pode ser baixado e preenchido pela grávida, conforme as suas necessidades e vontades.

‘Não tive minhas vontades atendidas’

O plano de parto é, além de uma oportunidade de a mulher entender melhor todas as escolhas que estão envolvidas na gestação, uma ferramenta para assegurar que ela continue exercendo o direito sobre o próprio corpo no momento do parto. Trata-se, no entanto, de uma possibilidade pouco discutida e os desafios ainda são muitos.

Prova disso é Ingred, que, apesar de todo o planejamento, teve suas vontades negligenciadas no grande dia.Isso porque a jovem não conseguiu chegar a tempo na maternidade de BH e precisou dar à luz a pequena Joana no meio do caminho, em um hospital de Contagem.

“Fui para uma maternidade de lá, pegaram minhas informações e eu entreguei o meu plano de parto, expliquei que lá estavam todas as orientações de como eu queria que fosse o meu parto”, conta. A reação da equipe foi um balde de água fria: o plano nem mesmo chegou a ser aberto.

“Eles não queriam me dar analgesia, que era uma das minhas exigências. Também tinha pedido um banho para terminar de dilatar e não me atenderam. O médico que fez o parto da minha filha nem pegou no papel”, relata Ingred, bastante frustrada.

Mesmo assim, ela não se arrepende de ter se dedicado a pensar cada passo da gestação de sua filha. “No meu segundo parto, como eu tinha mais experiência, eu fiquei menos assustada”, conta. Ela pontua que, na segunda vez, conseguiu ter parte de suas vontades atendidas justamente porque já havia comunicado a equipe sobre como queria que o momento fosse conduzido.

Joana é filha de Ingred, que conheceu o plano de parto por meio da internet (Arquivo pessoal)

Plano de parto desrespeitado: e agora?

O relato de Ingred revela a realidade de inúmeras mulheres que, mesmo tendo acesso ao pré-natal e conseguindo elaborar o plano, não têm seus desejos respeitados no momento do parto. Nesses casos, a advogada Ana Dulce explica que a unidade de saúde e os envolvidos podem ser responsabilizados administrativamente, tanto cível quanto criminalmente – caso haja alguma violência.

“Se o hospital recebe o plano de parto e não aceita, ele pode ser responsabilizado. Em casos, por exemplo, que uma mulher sofre um corte desnecessário, uma mutilação genital é considerada lesão corporal, então entra na parte criminal”, conta.

“Um parto realizado sem intercorrências, com um bebê saudável, não quer dizer necessariamente que aquela mulher não tenha passado por nenhuma violência”, alerta a advogada. Por isso, segundo ela, é importante fazer o registro e, ao assinar o termo de consentimento do parto, ressaltar que existem orientações registradas. 

Forma de ‘empoderamento’

Além disso, de acordo com Ana Dulce, para além do planejamento, o documento é necessário por ser “uma forma de a mulher grávida expressar seus desejos para aquele momento, do que pode ou não ser feito com ela nesse processo”. “É uma diretiva de vontade, que não busca limitar a autonomia médica, mas sim empoderar as mulheres”, pontua.

Quem também compartilha desse ponto de vista é Ingred, que, em caso de uma nova gravidez, Ingred pretende apostar novamente no plano de parto. “Acredito que, caso eu engravide, ainda assim eu o faria novamente. Quando o parto está se aproximando, você começa a delirar, a ficar confusa… Então o plano funciona como um ‘mapa’ de como você quer que as coisas realmente aconteçam”.

Formalização no cartório: precisa mesmo?

Para ter seus direitos resguardados, a advogada Ana Dulce orienta que as mulheres, além de elaborar o plano de parto, também reconheçam o documento em cartório. Para ela, assim como para a doula Gabriela Dantas, que viralizou com o alerta no Twitter, essa formalização pode garantir que o hospital respeite as decisões da gestante.

“O registro de parto em cartório nada mais visa do que um tratamento respeitoso, em que a mulher é vista como sujeito e não objeto”, define. Ela cita, por exemplo, casos em que grávidas são submetidas ao procedimento chamado de episiotomia, que se trata de um corte feito na região do períneo para ampliar o canal do parto. Apesar de não ser proibida, a episiotomia é altamente desencorajada e considerada uma espécie de violência em muitos casos.

Para a advogada, esta é uma das questões que podem ser previstas no plano de parto, já que o corte é desnecessário. “É importante que as condutas estejam de acordo com evidências científicas mais atualizadas, então não é porque o pai era médico, que fazia de um jeito, que o filho médico tem que fazer”, justifica.

Em contrapartida, a também advogada Gabriella Sallit acredita que a formalização do plano de parto junto a um cartório não precisa ser uma prioridade. Para ela, é mais eficaz protocolar o documento junto à maternidade, porque, nesse caso, é possível provar que a instituição foi notificada previamente e sabia das demandas da gestante.

“Na vida real, a gente sabe que a violência obstétrica é subnotificada. Por isso, o plano de parto não é só uma chance de aprender e se qualificar, mas também uma abertura de diálogo com o hospital e equipe. Se você protocola ainda no início gravidez, recebe resposta inclusive colaborando para que passem a atuar com evidências científicas”, disse ao BHAZ.

Como registrar o plano de parto?

Para quem deseja formalizar o plano de parto junto a um cartório, existem alguns caminhos que podem ser seguidos. No primeiro, a gestante pode fazer um contrato com o hospital, em que serão expostas todas as suas vontades e necessidades para o momento do parto. Esse contrato pode ser reconhecido em um cartório de notas e, depois, registrado em um cartório de títulos e documentos.

Também existe a possibilidade de a gestante registrar, pelo cartório, um documento chamado Declaração de Vontade Antecipada. Com ele, a mulher tem a oportunidade de orientar os médicos sobre cuidados e tratamentos que quer ou não receber no momento em que estiver incapacitada de expressar livremente a sua vontade.

Já para aquelas gestantes que não veem necessidade de registrar o documento no cartório, mas querem garantir que seus desejos serão respeitados, a advogada Gabriella indica um caminho mais simples: detalhar o plano de parto diretamente para o hospital ou maternidade por meio de um canal em que o contato possa ser comprovado – email, por exemplo.

Fazendo isso, as gestantes conseguem aumentar as chances de terem suas vontades respeitadas e, caso não sejam, têm algum nível de segurança para tomar as medidas cabíveis contra a equipe responsável pelo parto.

Violência obstétrica

Seja qual for o formato escolhido para registrar o plano de parto, as especialistas ouvidas pelo BHAZ concordam que o importante é que as mulheres saibam que o têm como uma possibilidade e o utilizem.

É justamente o plano de parto um dos principais caminhos para se proteger contra a violência obstétrica – aquela que ocorre no momento da gestação, parto, nascimento e/ou pós-parto, inclusive no atendimento a mulheres que precisam abortar. Ela pode se manifestar de forma física ou psicológica, verbal, simbólica e sexual.

Atos de negligência, discriminação ou condutas excessivas, muitas vezes prejudiciais e sem embasamento em evidências científicas, também podem ser considerados violência obstétrica. O termo, no entanto, é repudiado por parte da categoria de saúde – por não existir consenso sobre a definição e terminologia.

Para alguns, a expressão “violência obstétrica” estimula embate e conflito na relação entre médicos e pacientes. Apesar das divergências, milhares de mulheres sentiram e sentem, todos os dias, os males da violência obstétrica.

A pesquisa Nascer no Brasil, da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), mostra que 45% das mulheres atendidas pelo SUS (Sistema Único de Saúde) no parto são vítimas de maus-tratos. O levantamento é o maior já realizado no país e ouviu quase 24 mil mães, entre 2011 e 2012.

‘Tem cachorro aí melhor tratado que mulheres’

Em 2020, um ano após a lei estadual 23.175/18 contra a violência obstétrica ter sido sancionada em Minas, pelo então governador Fernando Pimentel (PT), a Caritas Minas Gerais reuniu depoimentos de mulheres vitimadas por condutas pouco humanas enquanto estavam grávidas.

O documentário “Mulheres que geram: entre a dor e a violência do parto” traz relatos impactantes de moradoras da cidade de Januária, no Norte de Minas. A bebê de uma das mulheres entrevistadas morreu durante o parto. Ela conta que achava que também morreria por conta do tratamento recebido em uma unidade de saúde.

Em outro depoimento, uma segunda mulher, uma pescadora, diz que fica triste ao ver grávidas, não pela gestação em si, mas sim por saber do tratamento recebido. “Tem cachorro aí que é muito bem tratado, mais do que as mulheres que chegam ao pronto-socorro”, diz em um trecho.

Entre as possíveis violências obstétricas estão lavagem intestinal e restrição de dieta, ameaças, gritos, chacotas e piadas. Omissão de informações ou divulgação de dados que possam insultar a mulher, não permitir que a gestante tenha a companhia de quem escolheu ou não receber alívio para dores também entram no grupo de violências consideradas obstétricas.

Mas, por falta de uma legislação específica sobre o tema e da naturalização de muitos maus-tratos, acredita-se que os casos sejam subnotificados – o que é apenas a ponta de um problema ainda maior. É que estudos recentes indicam que mulheres vítimas de violência obstétrica têm mais chances de desenvolver depressão pós-parto, além de evitarem fazer consultas médicas consideradas importantes.

Em 2019, o então governador de Minas, Fernando Pimentel (PT), sancionou a lei estadual contra a violência obstétrica. “Com a lei, nós queremos que as mulheres tenham acesso à informação sobre os seus direitos e que não haja mais a violação desses direitos, porque isso causa traumas físicos e psicológicos no pré-parto, no parto, no puerpério e também em situações de abortamento”, contou a então deputada Geisa Teixeira (PT), autora do projeto que originou a lei.

Violência obstétrica: Debate na Câmara Municipal de BH

Em junho deste ano, uma audiência na Câmara de Vereadores de Belo Horizonte discutiu a violência obstétrica. Na ocasião, foram ouvidos profissionais de saúde e integrantes da sociedade civil. O encontro foi solicitado pela vereadora Iza Lourença (Psol) e promovido pela Comissão de Mulheres.

“Falar que é possível nascer de forma respeitosa no Brasil e que também é possível que as mulheres se sintam respeitadas em todos os momentos é um tema ainda mal resolvido. É preciso dizer que violência obstétrica não se restringe ao parto e que as mulheres são violadas em vários contextos”, disse durante a audiência Danúbia Mariane, enfermeira obstétrica e coordenadora da Câmara Técnica de Saúde das Mulheres do Coren (Conselho Regional de Enfermagem).

Já Flávia Marcelle Torres, uma das coordenadoras do projeto Gestação Legal, representou a Defensoria Pública de Minas Gerais. O Gestação Legal atua de forma preventiva e busca esclarecer para as mulheres situações de violência.

“Tentamos trazer luz para essas violências. Muitas mulheres nem sabem que estão sendo violentadas. Essa violência foi naturalizada. As mães são submetidas a inúmeros procedimentos e violências e não podem reclamar. Penso que tudo isso está ligado à violência histórica contra a mulher”, afirmou.

‘Retrocesso’

Para o médico Edson Borges, obstetra do Hospital Sofia Feldman, há um tripé que deveria estruturar as boas práticas obstétricas no Brasil – e ele não está posto. De acordo com ele, o poder público, os profissionais da área médica e as mulheres são aquilo que sustenta a proposta de uma relação humanizada com a gestação e o parto.

“O governo atual quer propor um retrocesso aos avanços que ocorreram. A categoria dos médicos tenta manter a situação do jeito que está ou no máximo fazer pequenos ajustes. Dois pés desse tripé estão enfraquecidos”, afirmou.

Ele ainda ressaltou que o movimento organizado de mulheres, junto com as doulas, é o único que se mantém firme. Para Edson, as enfermeiras obstetras têm competência para mudar o que está acontecendo e essa busca de espaços não é uma guerra entre as categorias.

Três encaminhamentos foram dados pela Comissão de Mulheres a partir do debate durante a audiência. Um pedido de informação sobre o cumprimento das orientações da Comissão Perinatal por parte da PBH (Prefeitura de Belo Horizonte); ações de fortalecimento do programa Gestação Legal, da Defensoria Pública de Minas Gerais; e indicação ao Executivo municipal para que as maternidades públicas e privadas de BH retomem a ação das doulas mesmo na pandemia de Covid-19.  

Canais de denúncia

Mulheres que sofreram algum tipo de violência obstétrica podem formalizar uma denúncia contra a unidade de saúde ou contra o profissional responsável através do Disque Saúde (136) ou do Disque violência contra a Mulher (180). Independente do tipo de violência sofrida, é necessário reunir os seguintes documentos para a queixa:

  • Prontuário médico (que deve ser fornecido pelo hospital ou unidade de saúde, sem custo);
  • Cartão da gestante;
  • Plano de parto;
  • Exames;
  • Contratos e recibos (quando na rede privada).

Também é possível procurar a Ouvidoria do hospital ou da unidade de saúde em que ocorreu a violência, levando os documentos e também um relato escrito. A paciente ainda pode procurar as representações dos profissionais envolvidos, como o Conselho Regional de Medicina e o Conselho Regional de Enfermagem.

Caso a violência tenha acontecido na rede privada, utilizando plano de saúde, outra opção é prestar queixa junto à Agência Nacional de Saúde ou diretamente à ouvidoria do plano contratado.

Edição: Giovanna Fávero
Larissa Reis[email protected]

Graduada em jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2021. Vencedora do 13° Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, idealizado pelo Instituto Vladimir Herzog. Também participou de reportagem premiada pela CDL/BH em 2022.

Roberth Costa[email protected]

De estagiário a redator, produtor, repórter e, desde 2021, coordenador da equipe de redação do BHAZ. Participou do processo de criação do portal em 2012; são 11 anos de aprendizado contínuo. Formado em Publicidade e Propaganda e aventureiro do ‘DDJ’ (Data Driven Journalism). Junto da equipe acumula 10 premiações por reportagens com o ‘DNA’ do BHAZ.

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