Um trote do curso de engenharia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) tornou-se alvo de críticas nas redes sociais nessa sexta-feira (6). Calouros do curso publicaram imagens que mostram uma estudante branca com o corpo inteiro pintado com tinta preta e caracterizada como garçonete.
O trote foi realizado nessa quinta-feira (5), no campus da universidade em Macaé, no litoral fluminense, e considerado racista por fazer blackface – nome dado a uma prática antiga de pintar o rosto com tintas marrons ou pretas para “parecer negro”.
A imagem foi publicada por uma aluna da faculdade em uma conta que foi deletada posteriormente, com a seguinte explicação: “Eu não escolhi ser pintada da forma que foi, foi escolha dos veteranos e eles escolheram assim não sei o porquê, mas não acho que foi no intuito de fazer blackface”.
A publicação ainda acrescentava que a decisão de pintar os calouros com tinta marrom e caracterizá-los como garçonetes foi uma brincadeira que surgiu de uma piada interna da turma.
Em nota (confira na íntegra abaixo), a direção do campus da UFRJ em Macaé disse que “repudia quaisquer manifestação de caráter racista em suas dependências e abrirá inquérito para apurar o ocorrido”. A universidade informou ainda que, caso seja constatado crime de racismo, os envolvidos serão responsabilizados na esfera acadêmica e criminal. Os trotes estão proibidos enquanto durarem as investigações.
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Blackface
Os primeiros registros de blackface datam do século XIX, em Nova Iorque, quando atores brancos pintavam os próprios rostos para encenar negros em peças humorísticas. A mudança física era comumente associada a sotaques e trejeitos exagerados, que ridicularizava pessoas negras para entretenimento dos brancos.
O blackface surgiu porque, na época, pessoas negras não eram autorizadas a subir em palcos e atuar. Até os dias de hoje, atores negros ainda enfrentam dificuldades para conseguir papeis de relevância na indústria audiovisual e a prática se espalhou para outras esferas, reproduzindo estereótipos ofensivos em diversos âmbitos, como no caso da universidade fluminense.
Humberto Adami, presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, explica que o caso era muito comum antigamente. “Hoje em dia não se aceita mais esse tipo de situação, a própria sociedade brasileira já se modificou muito e a população negra tem sido muito vigilante. Esse tipo de coisa obviamente evoca uma época onde a população negra sequer tinha a presunção de ser humano, é uma situação vexatória com agravante de racismo”, explica.
O advogado ainda lembra que, por mais que não haja uma legislação específica referente ao blackface no Brasil, a prática ainda pode ser punida criminalmente. “Além de ser um trote criminoso e de mal gosto, com certeza tem uma conotação racial de diminuição e, portanto, não só a legislação como os órgãos de repressão, como a polícia, o ministério publico e poder judiciário, devem sim procurar extrair daí os elementos de tipo penal ou de agravante”.
Racismo na universidade
Notícias sobre episódios de racismo cometido dentro de universidades são veiculadas com frequência e denunciam uma realidade comum a instituições de diversos estados do Brasil. Humberto reforça o perigo de casos como este se repetirem justamente nas faculdades: “A universidade não pode ser um local onde se reproduza o crime de racismo, o crime da história da escravidão, que é crime de lesa humanidade”.
Sobre o argumento defendido pela jovem das imagens de que a situação não passou de uma brincadeira, Adami lembra que é comum no Brasil: “Essa é uma das características do racismo brasileiro: sempre foi uma ‘brincadeira’, um ‘engano’, nunca houve a intenção…. Eu acho que seria uma boa conduta para a universidade esses estudantes serem obrigados a frequentar cursos de relações raciais e de noções de diversidade”.
Ele ainda reforça que o blackface é, por natureza, racista e que não há como negar esta realidade. “Isso é colocar as pessoas negras de hoje numa situação que evoca os tempos em que a população negra era escravizada, não tinha direitos sequer de seres humanos, estava em posição de submissão e humilhação permanente. Portanto, quando há a tentativa de evocar isso no cotidiano de hoje, é racismo sim, porque essa situação aí não tem outro objetivo se não uma afronta à população negra”, explica.
Em Minas Gerais
Em 2013, um caso de trote racista também marcou a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Na ocasião, estudantes da Faculdade de Direito também passaram tintas escuras na pele de calouros brancos e ainda foram mais longe: fizeram uma jovem andar acorrentada e com uma placa que dizia “caloura Xica da Silva”.
Em outras imagens, um aluno aparece com um bigode que faz referência ao do ditador alemão Adolf Hitler, enquanto posa fazendo saudação nazista ao lado de um jovem com a pele pintada de marrom amarrado a um poste.
Mais de um ano depois do episódio, a UFMG decidiu pela expulsão de um aluno e pela suspensão durante um semestre de outros três envolvidos no caso. Na época, a universidade informou, em nota, que tomou a decisão por recomendação feita por uma comissão encarregada de conduzir o processo administrativo disciplinar instaurado contra os estudantes.
Nota da UFRJ Macaé na íntegra:
A Direção do Campus UFRJ-Macaé repudia quaisquer manifestações de caráter racista em suas dependências e abrirá inquérito para apurar o ocorrido no dia 05 de março no trote dos calouros da Engenharia.
Informamos que as investigações serão realizadas seguindo o procedimento legal e, caso seja constatado crime de racismo, os envolvidos serão responsabilizados tanto na esfera acadêmica quanto na criminal.
Enquanto durarem as investigações, os trotes estão suspensos e proibidos dentro das dependências do Campus da Universidade Federal do Rio de Janeiro em Macaé.
Lançamos, no início da semana, uma campanha para impedir o trote violento ou vexatório e garantimos que condutas de caráter racista, homofóbica, sexista ou que configure qualquer tipo de discriminação serão severamente punidas.