Refugiadas desafiam preconceito e fortalecem atividades em BH

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Marianny, Lauris e Marisol conseguiram um emprego na capital mineira depois de anos sem grandes oportunidades no país (Arquivo Pessoal)

O Dia Mundial do Refugiado, comemorado neste domingo (20), volta os olhares para a situação de mais de 25 milhões pessoas pelo mundo que foram forçadas a deixar seus países de origem por correrem risco de vida. Em Belo Horizonte, uma parte dessa população desafia diariamente os preconceitos e empecilhos em prol de escrever um capítulo mais feliz de sua história. E não só eles ganharam, mas também a capital: aqueles que foram acolhidos conseguiram retribuir a inclusão colaborando para o desenvolvimento da cidade.

Mary Ghattas, de 32 anos, é uma dessas pessoas. Ela se mudou da Síria para Belo Horizonte depois que leu vários elogios sobre a cidade na internet. “Quando decidimos que íamos para o Brasil, abrimos a internet para ver reportagens de como era a vida aqui e todas falaram que BH, de temperatura, é a melhor cidade, porque não tem muito frio, muito calor, a vida é muito tranquila, tem como andar, passear, tem segurança” conta.

Segundo ela, os elogios à população belo-horizontina também não foram poucos. “A maioria falou que o povo mineiro era muito acolhedor, ele abraça, nem olha para que você é estrangeiro. E até hoje não sentimos que somos estrangeiros”, afirma. A decisão de vir para cá, no entanto, não partiu de um desejo de se mudar de casa, e sim da falta de segurança no país de origem.

Desde 2011, a Síria está em uma guerra civil que já matou mais de meio milhão de pessoas. “Eu e o meu marido combinamos de casar em 2014, mas achamos que não era bom viver em um país com guerra. Tem falta de alimento, médico, remédio, e o mais importante, segurança. Então resolvemos casar e sair do país”, relata Mary.

Imigrante X Refugiado

A falta de segurança que afligia o casal é justamente o que os diferencia de demais imigrantes. No caso do refugiado, a necessidade de mudar de país surge porque a continuidade naquele local significa risco de vida, conforme explica ao BHAZ Felipe Silva, analista social do SJMR (Serviço Jesuíta a Migrantes e Refugiados).

“Essa pessoa tem um fundado temor de perseguição ou morte devido a algum tipo de perseguição ou algum conflito armado que esteja em andamento no seu país; ou por ela pertencer a um grupo político, étnico; ou pelas suas características pessoais, ela está em risco. Então, refugiado é aquela pessoa que precisa sair do seu país”, pontua Felipe.

O imigrante, por outro lado, sai de casa voluntariamente. “É uma categoria de pessoas, grupos, que se deslocam internacionalmente, mas por uma questão voluntária. Há um desejo de migrar, seja por uma questão econômica, de saúde, estudos, ou por reunião familiar, por exemplo. Então, a principal diferença entre um e outro é que o imigrante tem essa voluntariedade e essa intenção de se deslocar, enquanto o refugiado não, ele se desloca porque precisa”, esclarece o analista.

‘Viver como um brasileiro normal’

Quando o casal da Síria percebeu que continuar na terra natal poderia colocar em risco a integridade física deles e de sua futura família, começaram a procurar por um país que daria a eles aquilo que não estavam desfrutando na Síria: a liberdade. “Começamos a procurar pelos países que estavam nos recebendo, mas infelizmente, estavam recebendo para colocar em campos de refugiados. O único país que deu o visto normal foi o Brasil”, conta Mary.

“Na embaixada brasileira, eles falaram: ‘Você vai viver como um brasileiro normal, tem que trabalhar, estudar, ninguém vai pagar nada para você, você tem que viver como o brasileiro está vivendo’. E é isso que a gente gosta. Porque outros países te davam casa, salário, mas você não pode fazer nada da sua liberdade. Então escolhemos o Brasil por isso”, explica.

Atualmente, o casal tem seu próprio restaurante, no bairro São Pedro, na região Centro-Sul de BH, onde fazem comida árabe e de outros lugares do mundo. “Nós estamos fazendo todo dia um prato árabe para o povo conhecer a comida árabe mesmo, sem ser ‘abrasileirada'”, conta. Eles também têm duas filhas, já nascidas no Brasil. A mais velha com 6 anos, e a mais nova, 3. “São mineiras”, diz Mary.

‘Estamos tentando todos os jeitos para manter a dignidade, porque com crianças não se pode faltar nada em casa’ (Mary Ghattas/Arquivo Pessoal)

Mais uma guerra civil

A congolesa Benediction Kipuni, de 25 anos, precisou sair de sua casa por um motivo parecido. Mesmo vindo de um lugar muito diferente, a jovem também se encontrava no meio de um conflito armado. “Na minha cidade tem guerra. Eu moro no leste do país, onde tem guerra civil há mais de 20 anos e isso afeta muito as pessoas lá. Às vezes, a gente pode estar na escola e a guerra começa, e as pessoas ficam 2 meses sem estudar”, conta a congolesa, que veio sozinha, aos 20, para o Brasil.

Como a situação não atinge todo o território, não são todos os congoleses que são considerados refugiados. “No caso dos países em que não há uma situação deflagrada e reconhecida de violações de direitos humanos, de perseguição, de conflitos, como na Síria e na Venezuela, por exemplo, o que acontece é que o Conare, que é o comitê nacional que julga, avalia, recebe os pedidos como refugiado ou não das pessoas que solicitam o reconhecimento, analisa caso a caso pra identificar se estão ou não presentes as características do refúgio”, explica Felipe Silva.

Sendo assim, solicitantes da República da China, da República Democrática do Congo, ou até do próprio Haiti, por exemplo, esperam anos para conseguir uma resposta definitiva do governo federal. Enquanto isso, vivem com documentos provisórios no país. “Foi bem complicado, eu pedi o refúgio e ficou muito demorado, acho que eu fui aceita depois de 2 anos”, conta Benediction.

Com isso, a congolesa viveu no Brasil, durante todo esse tempo, apenas com um papel para se identificar, já que não tinha recebido um documento ainda. “Na Polícia Federal, na minha época davam papel, mas ninguém conhece esse papel, vai nas outras empresas não conhecem, abrir conta bancária é muito complicado…”, relata.

Conquistadas pelo povo mineiro

Apesar dos fatores desfavoráveis, Benediction conseguiu emitir uma carteira de trabalho e arrumar um emprego. Ela também não deixou de se apaixonar pelo povo mineiro. O motivo da vinda para o estado, contudo, não tinha relação com as pessoas. “Eu pesquisei primeiro pela comida e a primeira coisa que pareceu foi feijoada. Eu amo feijoada, tropeiro. Eu gosto muito daqui, do Brasil. O mineiro é muito acolhedor”, diz.

Elogios aos mineiros também não faltam de duas venezuelanas que acabaram de chegar na capital. Ambas se refugiaram no país há mais de um ano, mas foi apenas em Belo Horizonte que conseguiram um emprego formal, além de uma bolsa para estudarem na Faculdade Arnaldo, tudo isso em menos de cinco dias na capital.

“Os meus colegas se sentem animados por compartilhar o ambiente de trabalho com uma pessoa que é de outro país, me perguntam muito acerca dos costumes da Venezuela, da música, comida”, conta Marianny Gomez, 27.

As meninas também elogiaram o “clima ameno” de BH. “A cidade é muito bonita, e gosto que está fazendo frio agora. Eu estava morando em Boa Vista (RR) antes, um lugar muito quente. A vista me encanta, os edifícios são muito lindos, muito grandes”, diz Lauris Moreno, 20.

Um país acolhedor?

Uma pesquisa divulgada na última quarta-feira (16), com base em levantamentos feitos em 28 nações, aponta que o Brasil é o terceiro país com a população mais aberta a receber refugiados. A maioria dos brasileiros afirma acreditar que as fronteiras devem estar abertas a estrangeiros que sofrem com guerras e perseguições, mesmo durante a pandemia.

Apesar do resultado animador, as próprias venezuelanas precisaram passar por uma trajetória difícil no Brasil antes de conseguirem um espaço no mercado de trabalho formal. Os desafios – que, no caso delas, felizmente foram superados – são presença constante na rotina das milhões de pessoas que vivem na mesma condição e por causa deles, muitos refugiados se veem jogados à própria sorte, obrigados a lidar com mudanças ainda mais drásticas do que a saída do país de origem.

Marianny é advogada, chegou no país em fevereiro do ano passado, e desde então vendia comida na rua, como bolos de chocolate e rosquinhas. Em outros dias, trabalhava como diarista de limpeza ou como ajudante de cozinha na padaria.

“Nunca tive uma carteira assinada, nunca encontrei um emprego estável”, conta a advogada. “Não foi uma situação nada fácil, muitas vezes me entristeci, desanimei, e creio que isso pode acontecer a qualquer pessoa que não está acostumada a ter que vender nas ruas”, aponta.

‘A gente aprendeu do jeito difícil’

Yineska Marisol, de 21 anos, é mais uma venezuelana que conseguiu a vaga junto com Marianny, além da uma bolsa na faculdade. Antes disso, no entanto, ela trabalhou durante oito meses como empregada doméstica. Na Venezuela, estava cursando Informática na universidade.

Laurís, por sua vez, precisou de uma trajetória de mais de dois anos no Brasil para conseguir se estabilizar. A princípio, ela havia se mudado para Boa Vista com a família, mas a mãe sofria com o tratamento que recebia no trabalho.

“Minha mãe estava trabalhando em uma casa de família, mas eles eram muito maus com ela. Muitas vezes, se aproveitaram dela. Ela entrava muito cedo e chegava tarde. Era difícil, chegava muito cansada e eu não gostava de ver ela assim, mas eu não conseguia um trabalho”, conta a jovem, que antes estudava administração na faculdade.

Situação semelhante aconteceu com a síria Mary. Ela lembra que, antes de montar o seu próprio negócio, foi enganada por brasileiros, logo após chegar na capital mineira. “Trabalhamos 7 meses sem carteira assinada e pagaram até menos que o salário mínimo. Quando fiquei grávida, me mandaram embora. Não conhecíamos as leis trabalhistas aqui, então a gente aprendeu do jeito difícil”, relata.

Preconceito desafia proteção

A discriminação apareceu como mais um fator agravante. “Quando eu estava em Boa Vista, recebi muito desprezo por ser venezuelana. Aqui em BH, ainda não aconteceu, nunca vi esse tipo xenofobia”, conta Marianny.

“Já sofri preconceito no ônibus, por ser negra, por ser estrangeira. Já escutei: ‘Você é estrangeiro pegando nossos lugares, você está aí trabalhando’. Olha, eu sou professora de inglês e francês. Eu também faço roupas africanas, e elas são a minha cultura que eu carrego. O tecido eu trago todo do meu país. É meu conhecimento que eu tenho”, questiona Benediction, que ainda rebate o argumento de que estaria “roubando” o lugar dos brasileiros: “Será que a pessoa sabe mesmo falar inglês, francês, para dar aula no meu lugar?”

‘Houve pessoas que me julgaram, pela minha cultura, pelo meu jeito de falar, mas a maioria me tratou bem’ (Benediction Kipuni/Arquivo Pessoal)

A xenofobia está entre os maiores desafios de proteção aos solicitantes de refúgio, refugiados e migrantes de forma geral. Conforme explica Felipe Silva, as atitudes xenofóbicas são “aquelas ações de discriminação, preconceito, agressão, ou violência, seja verbal ou física, destinada a um grupo especifico, em razão da origem”. “No caso, dos migrantes, imigrantes, refugiados, pela sua condição de estarem em deslocamento, seja ela voluntária ou forçada”, completa.

Esse preconceito, além de ilustrado nas ruas, é confirmado nos números. De acordo com a pesquisa do Ipsos, seis em cada dez entrevistados afirmam que desconfiam dos estrangeiros que querem ingressar em seu país como refugiados. Para eles, trata-se, na verdade, de pessoas que querem entrar por razões econômicas ou para tirar vantagem dos serviços de assistencialismo oferecidos pelo governo.

Os países com maior índice de desconfiança, conforme a pesquisa, foram Turquia (81%), Malásia (76%), Rússia (75%), e Peru (73%). Por outro lado, EUA (49%), Japão (50%), Canadá (52%), e Brasil (53%) foram os países que menos acreditam nessa afirmação.

Oportunidade (e a falta dela)

Assim como Benediction, as três venezuelanas também conseguiram seu primeiro emprego oferecendo aquilo que têm mais de genuíno: a sua cultura. É que a empresa em que foram contratas estava procurando candidatos com domínio da língua espanhola para intermediar as operações com as demais filiais da América Latina.

“É muito difícil achar alguém fluente em espanhol, além de ter sido culturalmente importante encontrá-las, porque quem fala espanhol nativo é bem diferente de quem não fala. É sempre mais difícil saber as expressões de uma língua para outra e parte das comunicações com o cliente tem que ser mais natural. Por isso foi uma ótima contratação para a gente”, conta Rob Dolafi, diretor da Offerwise, empresa multinacional focada em pesquisa de mercado que tem as refugiadas no quadro de funcionários.

“Estamos ajudando quem precisa de ajuda, mas a gente está recebendo uma ajuda grande para nossa empresa. Então não é um caminho só de um lado, e sim para os dois. Esse processo também é meio pessoal para mim, porque meus pais fugiram do Irã, no meio da guerra com o Iraque, e eles conseguiram uma vida melhor nos EUA porque teve um empresário que acreditou na habilidade da minha mãe e a contratou”, relata.

A contratação realmente foi um momento muito especial na vida das meninas. “Foi uma notícia incrível, fiquei muito feliz quando recebi a notificação no meu email com o convite para a vaga”, conta Marianny. O mesmo sentimento foi descrito por Marisol e Lauris, todas contratadas para o mesmo cargo.

‘Agora que estou trabalhando, me sinto bem’ (Yineska Marisol/Arquivo Pessoal)

No cenário geral, no entanto, ainda há muito a avançar. Conforme mostra um estudo do Ministério da Justiça e Segurança Pública em parceria com o Observatório das Migrações Internacionais, existe uma quantidade cada vez maior de pessoas refugiadas e solicitantes de reconhecimento da condição de refugiado que não conseguem acessar o mercado formal de trabalho no Brasil.

No ano de 2019, 102.569 pessoas não estavam ocupadas no mercado, e apenas 22.807 tinham um emprego com carteira assinada. Além desse número, ainda existem milhares de refugiados no país que estão nas ruas, fora dos registros das organizações.

“Pequena empresas, empresários e pessoas que têm essas oportunidades de ajudar pessoas que estão num momento difícil na vida, é muito importante”, pontua o diretor da multinacional.

A força da inclusão

As histórias dessas mulheres mostram uma trajetória de muitas dificuldades, que começam no seu país de origem, de onde se viram obrigadas a sair, e continuam no país que se refugiam. Ao mesmo tempo, as refugiadas encontraram acolhimento na capital mineira, o que escolhem retribuir contribuindo para a comunidade.

Mary Ghattas enriquece a gastronomia da cidade com os pratos típicos de seu país. Benediction Kipuni apresenta a moda africana para a capital. Marianny Gomez, Yineska Marisol e Lauris Moreno utilizam de sua língua materna para preencher uma necessidade do mercado de trabalho belo-horizontino. Isso ainda é pouco aproveitado no Brasil.

É justamente para mostrar a importância dessas histórias que a ONU (Organização das Nações Unidas) instituiu o Dia Mundial do Refugiado, comemorado hoje. “Para ressaltar a importância da inclusão, a capacidade das pessoas refugiadas em contribuir com as comunidades que as acolhem e alertar a opinião pública sobre a situação do deslocamento forçado”, diz o site, que estampa ainda o lema frequentemente esquecido, mas necessário: “Juntos conquistamos tudo”.

Edição: Giovanna Fávero

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