Liesel

Pixabay/Reprodução

Por Lais Menini*

Depois de ler A Menina que Roubava Livros, em meados de 2010, decidi que, se tivesse uma filha, ela se chamaria Liesel. Pra mim, daquela leitura em diante, Liesel Meminger é o melhor e mais sonoro nome do mundo. Como eu não nasci Meminger, e sim Menini, tinha que dar certo com meu sobrenome também.

Na época eu já estava com o cara que viria a se tornar meu marido. Um dia, eu disse pra ele: se tivermos uma filha, ela se chamará Liesel.

A resposta foi: “jamais, você tá doida?”.

E para todas as outras pessoas que eu contava minha decisão, a reação era sempre a mesma: pouquíssima gente achava que Liesel era um nome que valeria a pena.

Hoje é 24 de dezembro de 2018 e acabo de descobrir que perdi minha primeira gestação.

Comecei a sangrar no dia 22. No dia 23, pela manhã, tive uma intensa crise de choro. Não consegui dormir direito à noite, estava enjoada de manhã. Acho que tinha começado a cair a ficha: aquele sangramento não era normal.

Fiquei consternada por muitos motivos, incluindo o dilema do que fazer se realmente tivesse perdido. Como contaria para as pessoas? Eu, que não sei guardar a língua dentro da boca, dei a novidade para muita gente na semana em que fiz o xixi no palito. Agora, deveria – deveria? – aprender a lidar com todos os lutos que estaria causando.

Essa preocupação não era nova. Antes dos sangramentos, tive uma crise de choro pensando em como eu diria às pessoas as más novas, caso a gestação não desse certo. Tentei ser racional desde o início e, inclusive, sugeri que as pessoas ao meu redor também fossem racionais. A ironia é que nunca tinha pensado no que EU ia sentir se perdesse a gestação. A frustração pelo que todos os outros sentiriam, estranhamente, me era mais importante do que a minha própria.

Durante a crise de choro com o marido, descobri a razão: na minha cabeça, se eu perdesse o neném, a culpa era minha. Eu seria culpada e falha. A exata palavra que disse para o Danilo foi: indigna.

Se aquele sangramento indicasse a perda de um neném, eu me consideraria, automaticamente, indigna de gestar uma criança.

O primeiro exame de toque, no dia 23 de dezembro, mostrou que eu não tinha abortado. Aquilo me deu esperanças. Comecei a falar com minha barriga, em silêncio. Disse ao neném que, se ele não quisesse ficar, eu iria entender, mas que, se ficasse, a gente ia se divertir bastante.

Ainda em silêncio, comecei a contar tudo para a barriga. Os sangramentos foram diminuindo gradativamente. Me tranquilizei. Dormi bem. Acordei menstruada. Minha cidade natal me pareceu estranha quando resolvi ir ao médico, já encarando a realidade inevitável.

Fui ao hospital em que nasci, onde o médico que me trouxe à luz estava de plantão, me examinou e deu o diagnóstico: o útero estava dilatado, expulsando qualquer coisa que ali estivesse. Rápido, rasteiro e sem sentimentalismo. Com pressa. Ele tinha uma grávida de cesárea esperando, na maca, para trazer seu bebê à vida.

O meu não existia mais.

Indigna.

Em minha defesa, fui cética desde o início.

Nunca acreditei que seria realmente capaz, e não fui.

No momento em que soube, não me ocorreu chorar. Ainda conversei com uma médica por telefone, com uma enfermeira que estava na sala de consultas, tentando ver o que poderia ser feito para que o útero estivesse a salvo. As primeiras lágrimas só vieram quando fui dar a notícia ao Danilo, por telefone, e me segurei minutos depois, quando um amigo me ligou – ele, sim, chorando – para dizer que sentia muito.

No mesmo dia, li uma matéria falando sobre as famosas que sofreram abortos espontâneos. Me deu certo alívio ver que sou fã de muitas delas: Pink, Lily Allen, Beyoncé, Nicole Kidman.

Isso foi o suficiente para que a declaração a alguns amigos próximos começasse assim: “acabo de entrar para a lista de celebridades que perderam a primeira gravidez”. Afinal, era véspera de Natal e, por mais que a data não signifique nada para mim, respeito que signifique para os outros e não quis matar a alegria natalina de ninguém.

Recebi inúmeras mensagens de apoio irrestrito, de pessoas consternadas pelo ocorrido. Nenhuma delas  estava me culpando, o que me fez pensar que os medos que eu tinha sobre ser a causadora do luto alheio vinham de uma longa vida sendo mulher e sabendo que as mulheres são, naturalmente, mais cobradas que os homens.

Tanto que a primeira pergunta que fiz à médica foi a que me pareceu a mais lógica: foi alguma coisa que eu fiz? Que eu comi?

Não, não foi algo que fiz, que comi.

Foi a natureza estabelecendo alguns limites.

Antes de o ano virar, precisei aprender a tirar o sonho da mesa e me sentar pra conversar com a realidade. Abraçar a dor e perguntar se ela tinha algum bom conselho a me dar.

E, se você quer mesmo saber, ela tinha.

Hoje é primeiro de março de 2018, início do mês em que celebramos – celebramos? – o Dia Internacional da Mulher. Ainda temos muitas coisas a reivindicar. Minha experiência me pede para adicionar mais um item à lista: o direito de abortar. Espontânea ou propositalmente. O direito de saber que ambas as possibilidades são corriqueiras e que cabe à natureza, e não à sociedade, julgar (a outras ou a nós mesmas) os eventos do sistema reprodutor.

Venho reivindicar o direito de que a primeira palavra que ocorra à gestante que perde ou interrompe sua gestação não seja indigna.

Essa palavra pesa e destrói.

Tenho sorte em vir de uma família maravilhosa, ter um parceiro espetacular e uma rede de apoio com amizades que me fizeram enxergar que a melhor saída, para mim, era me colocar de pé e aceitar as surpresas da vida. Estou à disposição para fazer parte da rede de apoio de quem não conta com a mesma galera do bem.

Se você acabou de passar por isso, deixa eu te contar como está sendo pra mim: até hoje, de vez em quando, a frustração bate. A racionalidade fala que isso é normal: infelizmente, uma primeira gravidez pode terminar de forma brusca. Mas é inconsciente achar que falhei, o sentimento aparece de supetão. Às vezes acho que a frustração por esse episódio vai sempre me acompanhar e, até que tenha filhos nascidos de mim, serei cética sobre minha capacidade corporal de gestar outra vida.

Quando penso isso – e essa é a primeira vez que EXPRESSO isso –, já sei o que as pessoas vão dizer:

“calma, não é assim”.

E eu sei que não é. E, ao mesmo tempo, sei que não tenho como controlar os sentimentos. Não é que acredite nisso conscientemente, mas não consigo fugir da ideação de que, até que ocorra, nunca saberei o que virá. Isso pode ser bom, isso pode ser ruim. Só o tempo dirá.

É esse o resumo do meu pós-aborto.

Voltando ao momento em que o descobri, enquanto estava no hospital, esperando ser atendida, ouvi os gritos em uma sala próxima. Uma mulher dava à luz. De repente, os gritos cessaram e o choro ecoou pelo corredor do hospital em São João del Rei, provavelmente na mesma sala onde, quase 32 anos antes, eu mesma chorava pela primeira vez.

Minutos depois, ainda aguardando atendimento médico, vi um pacote chegando ao berçário. Não dava pra ver nada além disso: um pacote de pano. Disse pra minha mãe:

– Olha, a neném chegou!

Insisti na intuição de que era uma neném, uma menina. O pacote foi sendo desembrulhado pela enfermeira. Tinha as pernas roxas e estava cobertinho de sangue e muco. Parecia um alienígena. Saí da janela porque estava cansada – lembre-se, eu estava sangrando um bocado naquela situação – e sou míope, ou seja, não enxergo de longe, menos ainda um bebê recém-nascido a cinco, seis metros de distância.

Minha mãe ficou lá, na janelinha, enxergou e me contou: era menina.

Acho que uma das razões pelas quais eu estava tão tranquila quando o médico enfiou todos os dedos possíveis no meu útero, viu sangramento por aborto e sugeriu a curetagem (que não se fez necessária), era porque fiz as pazes com a vida, que me deu exatamente o que eu queria:

eu tive uma Liesel.

Só por seis semanas, mas ela existiu.

Ela chacoalhou o mundo quando apareceu no formato de dois palitos rosas, em um teste de farmácia feito em um banheiro de academia. Foi para ela que mostrei algumas músicas preferidas no carro, enquanto nos deslocávamos pela cidade, e foi com ela que conversei por algumas horas, depois do primeiro medo. Se você não quiser ficar, eu entendo, mas, se quiser, vamos nos divertir bastante.

Eu conheci minha filha, conversei com ela e a deixei ir.

Foi minha cunhada, Carol, que me pegou no hospital depois do diagnóstico e disse a melhor coisa que eu poderia ouvir naquele dia estranho: depois de um “bebê estrela” pode vir um “bebê arco-íris”, trazendo cor à vida dos pais que enfrentam a tempestade.

Hoje eu diria que tive uma “estrela Liesel”.

Daquelas que, se passarem no céu pela primeira vez, os astrofísicos chamarão de Liesel2412. Que inspira casais românticos, sonhadores ao redor do mundo e caçadores de poemas toda vez que chega a noite e essas pessoas incríveis ousam olhar para o céu.

Como diz a orelha do livro que me inspirou seu nome,

quando a morte conta uma história, é bom parar para ouvir”.

Liesel, amei nossa experiência.

Você me mostrou propósito, incentivou vontades, refletiu o que sou de verdade e o que espero que esse mundo vire. Por sua causa, sei que sou muito mais forte do que poderia supor ou, até, pedir para ser.

Eu não te vi, filha, mas te conheci. Hoje sei, e abraço com gratidão nosso tão breve encontro, que você é a luz a iluminar as palavras que eu não poderia encontrar sozinha.

Obrigada pelos 40 dias em que esteve por aqui e por me tornar digna de entender o que você foi, é e sempre será na nossa história. Nunca vou me esquecer do que você me fez sentir.


*Lais Menini é jornalista por formação, escritora por vocação e executiva por afinidade. Gosta de falar sobre futebol, séries, Dragon Ball e livros. Os dois últimos assuntos têm um espacinho especial na internet através do projeto Literama (veja mais aqui).

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