‘Você gosta de ler? – Gosto, mas ainda não sei’

menino gosta de ler
IMAGEM ILUSTRATIVA (PIxabay)

“Você gosta de ler? Gosto, mas ainda não sei!
– Emanuel, 9 anos”

Era sábado de noite quando o garoto de nove anos me abordou pedindo comida. Lhe oferecemos batata-frita que tinha acabado de chegar em nossa mesa. Ele aceitou. O segurança logo veio para assegurar que tudo estava bem. Porém ao tentar assegurar algo, no preconceito social, ele amedrontou a respeitosa criança. O segurança tentou retirá-la de nossa mesa, mas pedi firmemente pra deixá-la ali conosco, uma vez que a criança iria comer e depois seguir pra vida. O segurança pediu para darmos prato descartável. Mas não, o prato que usamos foi o de vidro do restaurante. Naquele momento, ainda que seja pouco, eu me recusei a ofertar para aquela criança de nove anos chamada Emanuel um prato descartável. Ele, na sociedade que vive, já é tratado assim, descartado para longe, para a periferia, para fora do mundo dos prazeres e acessos. A dignidade eu acredito que venha em palavras e afetos e certamente em poder comer também.

Prato servido, eu comecei a conversar com Emanuel. Perguntei onde ele morava, se estudava e como era lá. Ele me respondeu que sim e disse das professoras que ele gosta na escola. Muitas professoras são anjos nesta terra de abandono. Ele tinha marcas na pele que eu enquanto adulto não tenho e nem passei perto de tê-las, marca do preconceito, abandono social e recursos escassos. Pele negra, rosto pálido. Ele tinha sorriso longínquo, daqueles que para encontrarmos temos que olharmos no fundo dos olhos circundados por excessivos sinais de alerta. Perguntei ao Emanuel se ele gostava de ler e ele sagazmente me disse:gosto, mas ainda não sei…

Fiquei reflexivo. Como assim, gosta e ainda não sabe. Afinal, ele já tem nove anos. Nove anos e não sabe ler livros, ainda que goste. Ele gosta por já saber escrever o nome dele. Ele me contou sorrindo essa parte. Ele gosta por ter algo de mágico ali. Ele gosta, mas ainda não pode. Automático que estou em meu meio já pensava que ele saberia ler e poder viajar longe com as palavras, mas não… ele tem nove anos de luta, ele não tem tempo pra viver a literatura já que a vida real lhe impõe inúmeras agruras.

Por fim, um começo. Deixei com ele algumas palavras que não sei até onde o acompanhará, mas as palavras dele me acompanham desde então. Eu lhe disse para ele ler quando tiver a oportunidade. Eu lhe disse isso. Foi o que deu tempo. Ele, saciado naquele momento, não quis mais batatas e agradeceu. Emanuel seguiu. Ele está por aí, numa hora destas, não sei se com fome e se tendo seus direitos resguardados como deve ser. Sei que Emanuel sabe ler. Ele lê o mundo atento aos perigos. Ele olha no olho quando tem gente que nem vê seu rosto. Emanuel fortaleceu em mim ainda mais a luta por melhores acessos à educação, cultura e prato de comida. Emanuel segue na vida, gostando de ler sem saber.
E eu sigo tentando escrever aos que podem, mas não leem …

Sobre o autor
Eduardo Lucas Andrade é escritor e psicanalista. Acompanhe mais pelo Instagram @eduatopsi.

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