O caminho das águas e da cidade

Escombros do que a água levou durante enchente na Avenida Tereza Cristina (Divulgação/Gabinetona)

Por Bella Gonçalves, vereadora de Belo Horizonte pelas Muitas/PSOL e
Andréia de Jesus, deputada estadual pelas Muitas/PSOL

“Do Rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem.” (Brecht)

Ruas danificadas, carros e pessoas arrastadas, casas e comércios alagados. Uma destruição sem tamanho. Os rios, comprimidos pela cidade, transbordam mais uma vez em Belo Horizonte e na Região Metropolitana. As cheias são parte do ciclo natural das águas e dos rios. Mas as cenas que presenciamos no Vilarinho, na Tereza Cristina e na Avenida Amazonas, em Contagem, estão ligadas às escolhas traçadas para a cidade: não existe, em Belo Horizonte e em nenhum município da região metropolitana, uma política que dialoga com o caminho das águas.

Os rios trazem vida para a cidade. Menos de 50 anos atrás, grande parte dos rios de Minas Gerais não era poluída. As pessoas pescavam e lavavam roupas no Arrudas, no Ribeirão do Onça, no Córrego do Vilarinho, no Rio Paraopebas, no Rio da Velhas. Em Venda Nova, existiam vários brejos cheios de taboas (vegetação utilizada para confecção de artesanato), onde também se nadava e pescava. O crescimento intenso da cidade, combinado com um planejamento urbano liberal onde impera a lógica rodoviarista, desconsidera a integração ambiental. O descaso com a presença poderosa da natureza só fez aumentar drasticamente o problema das enchentes: a drenagem e tamponamento dos rios, a construção de grandes avenidas de asfalto nas suas margens e o cimento tomando o lugar da vegetação impossibilitam a drenagem da chuva.

Essa política, que só promove o enriquecimento de construtoras e penaliza a população negra e empobrecida, segue sendo aplicada. No ano passado, o executivo aprovou um projeto de 85 milhões de dólares para drenar os córregos do Vilarinho, Nado e Isidoro. Repetimos as mesmas fórmulas e esperamos resultados diferentes – que não virão.

A ausência de políticas habitacionais, por sua vez, empurra os mais pobres para áreas de risco, próximo aos leitos poluídos nos rios. As políticas de desenvolvimento predatório inviabilizam a vida e a cultura daqueles e daquelas que fazem da beira do rio sua morada e fonte de sustento. Quando suas casas são destruídas, essas pessoas não encontram amparo suficiente no poder público – em uma inversão perversa, acabam sendo responsabilizadas por um problema estrutural das cidades.

A questão hídrica é um capítulo atualíssimo da crise urbana. Os rios, oprimidos pelas suas margens de concreto, são contaminados pelos resíduos do saneamento, da mineração e das barragens de rejeito. Transformadas em esgoto, lama e rejeito de mineração, as águas já não servem para nadar, beber, irrigar ou pescar. Adoecidas pelo capitalismo, as transbordam e devastam cidades. Nossos rios estão sufocados por esse modelo de cidade. É esse o futuro que queremos para as próximas gerações?

Precisamos acabar com a indústria das enchentes que insiste em obras faraônicas que só mascaram o problema. Precisamos subverter o modelo de canalização e tratar as enchentes de forma sistêmica e responsável. Como ressaltam os parceiros do Projeto Manuelzão, hoje transformamos córregos e rios em avenidas e nos espantamos quando as avenidas e ruas se transformam em córregos.

Soluções duradouras envolvem uma mudança na relação da cidade com a natureza. É preciso recuperar os rios com saneamento básico adequado e preservação da vegetação em suas margens. Isso pode ser feito com a construção de parques lineares, reassentamento adequado para as pessoas que estão nas áreas de risco e uma fiscalização mais rigorosa que garanta o respeito à taxa geral de permeabilização do solo, como já previsto na legislação municipal prevista pelo Plano Diretor, que aprovamos na Câmara Municipal de Belo Horizonte em 2019, por exemplo. O poder público pode buscar alternativas como a gradual substituição da pavimentação por uma mais permeável e o aumento das áreas verdes em torno dos rios. Também é preciso enfrentar as empresas e mineradoras que os destroem e ameaçam o abastecimento de água da população.

A água é sagrada e precisa ser cuidada como um bem comum. Não é possível que em uma capital rica como BH ainda existam moradias sem ligação regular de água e esgoto, onde o povo vive sem uma gota nas torneiras por mais de um mês, como é o caso da Izidora e da Ocupação Liberdade, no Barreiro. Não é possível que a RMBH, a terceira maior aglomeração urbana do Brasil, não tenha inteligência técnica e política para lidar com a água e com a vida do povo.

O caminho das águas não se limita às cidades e precisa ser pensada de forma integrada com a região metropolitana da cidade. A Gabinetona esteve com moradoras e moradores afetados pelas enchentes na Tereza Cristina para seguir exercendo nosso papel de fiscalizar e cobrar o Poder Público para que medidas sustentáveis sejam tomadas com urgência.

A forma como lidamos com as águas impacta diretamente na saúde, alimentação, higiene, qualidade de vida e na mortalidade materna e infantil. Segundo a sabedoria popular, as águas são fêmeas, têm uma força inabalável e sempre retomam o seu lugar. Aprendemos com os povos indígenas que as águas devem ser reverenciadas. Na tradição de matriz africana, às Águas de Oxalá abençoam e trazem paz, e as Águas de Oxum trazem fertilidade e prosperidade.

Dando continuidade ao diálogo com pesquisadores, socioambientalistas, engenheiros, urbanistas, movimentos sociais e com a população envolvida, nossas mandatas também se colocam à disposição para elaborar propostas para o estabelecimento de relações urbanas mais inteligentes e respeitosas com as bacias hidrográficas, bem como estratégias para a prevenção e a redução do impacto das chuvas que podem se transformar em proposições legislativas que dêem um passo rumo a soluções mais efetivas, consequentes e duradouras.

Sabemos que essa não é uma questão simples que pode ser resolvida em uma única gestão – mas precisamos reafirmar hoje o compromisso com o fim desse modelo que investe em estruturas de concreto para tamponar rios e privilegiar a circulação de carros. Soluções mais robustas são de longo prazo, é verdade, mas não podem mais esperar: precisam começar já.

Gabinetona[email protected]

A Gabinetona é um mandato coletivo construído por quatro parlamentares em três esferas do Legislativo. É representada pelas vereadoras Cida Falabella e Bella Gonçalves na Câmara Municipal de Belo Horizonte, pela deputada estadual Andréia de Jesus na Assembleia Legislativa de Minas Gerais e pela deputada federal Áurea Carolina na Câmara dos Deputados, em Brasília.

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