Rememorar sem comemorar

Evandro Teixeira/Reprodução

Para cumprir o compromisso (feito a mim mesmo) de escrever quinzenalmente aqui, fiz uma lista de assuntos variados, que não fossem só sobre política. Mas o que se constata é que os fatos pautam outros temas, na velocidade daquilo que acontece. Não posso fugir de tratar do tema contra o qual todos que têm juízo têm a obrigação de se ajuntar em veemente repúdio: a exaltação do golpe de 64 pelo presidente Jair Bolsonaro.

Bastaria ser golpe para não merecer comemoração alguma. Quanto mais um golpe que implantou uma ditadura que durou 21 anos e cujos malefícios se estenderam por décadas e ainda repercutem na vida do país. Não é à toa que a infeliz iniciativa de Bolsonaro (mais que outras) provocou a reação imediata de instâncias da República cuja função é a salvaguarda da nossa democracia, como o Ministério Público Federal. Mas não basta. É preciso formar um movimento de repúdio, espalhar a consciência de que só na democracia se tem liberdade.

Já ensinava Platão que o maior bem que produz a democracia é a liberdade – assim como a oligarquia tem em vista a acumulação de riquezas por poucos e a tirania implanta a pior das selvagerias. O que foram os anos de chumbo da ditadura civil-militar iniciada em 64 senão a imposição dessa selvageria contra os cidadãos? Há os que dizem que, então, não sofreram, não viram, não souberam de nada. É provável que sejam ingenuamente sinceros, pois imperava a censura. Mas, a esta altura, estão no mínimo equivocados, porque os casos de torturas, de assassinatos e de crueldade até contra crianças foram pacientemente levantados e estão publicizados, fazendo parte da memória nacional. Agora, se insistem no “não sofri, não foi comigo”, o que demonstram não é só falta de solidariedade, mas ignorância do que seja uma nação, em que o que acontece com qualquer cidadão afeta todos.

O cruel assassinato, no DOI-CODI do Recife, em 1973, de José Carlos da Mata Machado, aluno de Direito da UFMG, diz respeito a todos nós – e se não nos solidarizamos com a vítima, então somos cúmplices dos torturadores. Stuart Angel, 25 anos, foi torturado e morto na Base Aérea do Galeão, no Rio, amarrado a um caminhão, arrastado pelo pátio do quartel e obrigado a colocar a boca no escapamento do veículo. Cabe a cada qual decidir de que lado está. Nesta terça-feira (2), será lançado o livro do jornalista Eduardo Reina, “Cativeiro sem fim”, que relata a história de 19 crianças que foram sequestradas e ilegalmente adotadas por famílias de militares. E os casos de crueldade e covardia seguem aos montes. Não há como ficar em cima do muro.

Pressionado pela repercussão negativa, Bolsonaro voltou atrás (como tem feito desde o início desse governo atrapalhado em idas e recuos sem fim), dizendo que queria dizer não “comemorar”, mas “rememorar”. Rememoremos, portanto, o período dos mais lamentáveis da história do nosso Brasil – e nenhuma ditadura será mais que isso: digna de lamentos. Rememoremos para continuar a insistir, como se tem feito a cada ano, que tortura nunca mais, arbítrio nunca mais, censura nunca mais – e assim por diante.

Enfim, rememoremos esse passado que não deveria ter sido, para garantir um presente e futuro que é preciso estar atento para construir e salvaguardar dia a dia: de democracia e liberdade.

Jacyntho Lins Brandão[email protected]

Jacyntho Lins Brandão é doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo e professor de grego na Universidade Federal de Minas Gerais, onde foi diretor da Faculdade de Letras e Vice-Reitor. É autor de, entre outros, O fosso de Babel (romance) e A poética do hipocentauro (ensaio). Traduziu do original acádio o poema Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh, indicado para o Prêmio Jabuti de 2017. É membro da Academia Mineira de Letras.

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