Agressão a grávida, briga jurídica e Feira Hippie sem hippie: Entenda a guerra entre PBH e artesãos

Maira Monteiro/Bhaz

Criada há praticamente 50 anos, a Feira Hippie se tornou um dos principais símbolos de Belo Horizonte – e a maior feira de artesanato a céu aberto da América Latina. Nos últimos meses, no entanto, o cerco da Prefeitura de Belo Horizonte (PBH) contra o público adepto ao movimento que deu o tradicional nome ao evento tem se intensificado – chegando a registros das chamadas “vias de fato”, com denúncias de agressão até mesmo a uma hippie grávida de 5 meses. Mas como chegou a esse ponto? Os hippies serão expulsos da Feira Hippie?

Antes, uma breve contextualização. A feira, hoje conhecida no mundo todo, começou em 1969 na Praça da Liberdade e, 22 anos depois, foi transferida para o ponto conhecido atualmente: avenida Afonso Pena, no grande quarteirão em frente ao Parque Municipal. Com uma média atual de público de 60 mil pessoas, o evento batizado de Feira Hippie convivia bem com os artesãos nômades até 2010, quando a administração municipal decidiu mudar o nome para Feira de Artes, Artesanato e Produtores de Variedades de Belo Horizonte. Apesar do título mais pomposo, os hippies continuavam exibindo e comercializando a própria arte.

Em 2012, no entanto, um item adicionado ao Código de Posturas de BH começou a receber interpretações distintas. A norma passou a proibir o exercício de atividades por camelôs em logradouros públicos, e a administração pública interpretou, durante um período, que os hippies estariam incluídos nessa restrição. No mesmo ano, o juiz Geraldo Claret de Arantes emitiu uma liminar autorizando o trabalho deles por avaliar que os artesãos nômades não se identificavam com as atividades de camelô.

Hippies exibindo os produtos no último domingo, dia 9 (Maira Monteiro/Bhaz)

Para o magistrado, proibir que os hippies usem o passeio para exporem seus trabalhos é uma “ofensa à garantia constitucional de liberdade artística e cultural”. “Permitir que os artesãos de rua/hippies exerçam seu direito à expressão artística e cultural no Município de BH, podendo confeccionar e expor suas peças e objetos artísticos em via pública, podendo receber contribuições pecuniárias sem prévio licenciamento”, diz trecho da decisão (confira a liminar aqui).

A liminar – em vigor até hoje – vinha garantindo a presença dos hippies na Feira de Artes, Artesanato e Produtores de Variedades de BH. Até 2015, quando foi publicada uma portaria pela PBH.

A portaria

Há três anos, um novo – e importante – capítulo. A gestão municipal publicou a portaria 099/2015, na qual estabelece os locais da cidade onde os hippies podem exibir e comercializar os produtos artesanais. “Para fins de comprovação do disposto neste artigo, poderá a Fiscalização Integrada da PBH exigir que o artesão confeccione, no momento e local da exposição, as peças e objetos artesanais por ele expostos”, diz trecho da norma.

O problema é que, na região Centro-Sul, onde é realizada a Feira Hippie, os espaços delimitados pela administração ficam a pelo menos dois quarteirões de distância (veja abaixo) do fim do evento: rua dos Carijós, no quarteirão fechado, entre Praça Sete e rua São Paulo; rua Rio de Janeiro, no quarteirão fechado, entre Praça Sete e rua dos Tamoios; e Praça Rio Branco. E, conforme publicado no início desta reportagem, a feira reúne em média 60 mil pessoas – uma óbvia oportunidade para os artesãos nômades exibirem os produtos para um público à procura de artesanato.

Áreas previstas pela portaria para os hippies ficarem são distantes da Feira Hippie (Arte/Bhaz)

Apesar da portaria ter sido publicada em 2015, os hippies sentiram recentemente uma nova postura da equipe de fiscalização da PBH. “Tem cinco anos que vou à Feira Hippie todos os domingos. Nos últimos dois, três meses, a situação com a fiscalização está mais tensa”, afirma ao Bhaz Juliana Castro, uma das artesãs nômades que frequenta o evento na Afonso Pena.

Embate jurídico

A Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais analisa a portaria como uma forma de descumprimento da liminar por parte da prefeitura. No entanto, no último dia 22 de agosto, a PBH obteve na Justiça uma decisão favorável que diz que a portaria não descumpre a liminar. Como essa liminar ainda não foi revogada e a portaria continua em vigor, há dois documentos relativos à atividade dos artesãos hippies na capital.

Recentemente, o imbróglio jurídico ganhou um novo elemento. A sanção da Lei do Artista de Rua (11.126/2018), ocorrida em 29 de agosto, autoriza a apresentação de atividade cultural em via, cruzamento, parque e praça pública. Com isso, os artesãos nômades/hippies sentiram-se contemplados e autorizados a apresentarem suas artes na Feira Hippie. Como forma de comemorar a norma, no dia 2 de setembro, primeiro domingo após a sanção, os artesãos foram à feira levando suas artes e até mesmo um bolo para comemorarem. O fim foi trágico, com confrontos e agressões (veja mais abaixo).

Entre os argumentos da defensoria, está o de que a lei ocupa um nível hierárquico maior que portaria e liminar. “Apesar disso, a questão muda com a Lei do Artista de Rua, que inclusive permite a comercialização dos produtos da arte. A PBH descumpre a lei, é necessário que ela seja regulamentada”, explica a defensora pública Júnia Roman de Carvalho. Procurada, a PBH afirma que a Lei do Artista de Rua “define que compreende-se como atividade cultural de artista de rua: o teatro, a dança individual, a capoeira, as artes visuais, a música e a literatura, entre outros. Dessa forma, os hippies não se enquadram nesta lei”.

Na última terça-feira (11), uma reunião entre o subsecretário Municipal de Fiscalização José Mauro, as vereadoras Áurea Carolina (PSOL) e Cida Falabela (PSOL), artesãos e representantes dos feirantes não solucionou o impasse. De acordo com Áurea, o subsecretário José Mauro disse não ter condições políticas para avançar e que, por isso, deverá ter uma conversa com o prefeito Alexandre Kalil (PHS). “Esperamos que o prefeito se solidarize, pois ele fala que governa para quem precisa. Esses artistas vivem com muito pouco”, ponderou.

Para compreender a orientação dada aos fiscais, assim como esclarecer o motivo de alguns deles ficarem à paisana, conforme relato de artesãos, o Bhaz fez contato com a Secretaria Municipal de Política Urbana (SMPU) com o intuito de entrevistar o subsecretário José Mauro. A reportagem esperou mais uma semana para realizar a entrevista, mas a assessoria de comunicação se limitou a emitir um posicionamento por meio de nota, cujo trecho afirma que “para comercializar na Feira de Artes, Artesanato e Produtores de Variedades de Belo Horizonte, da avenida Afonso Pena, é necessário participar de processo de licitação e obter licença prévia da Prefeitura”.

‘Barbárie’

No último dia 2, trecho da Feira Hippie se transformou em uma arena com agressões trocadas entre fiscais da PBH e hippies. A artesã Juliana Castro relata que o confronto começou após abordagem de fiscais alegando que eles não estavam enquadrados na lei e que não estavam autorizados a ficarem na feira. “Eles disseram que na lei não está escrito a palavra hippie. Falei com o responsável pela fiscalização para não recolher os panos, pois nosso advogado estava chegando. Mas não adiantou”, contou.

Juliana, que está grávida de 5 meses, conta que estava de costas no momento em que os fiscais começaram a agir e que, ao virar para ver o ocorrido, tomou uma cotovelada na barriga, que ficou roxa. “Meus irmãos vieram me defender e a confusão generalizada começou. Fiscais à paisana e que estavam sem identificação começaram a agredir outros artesãos. Tivemos pessoas que ficaram com a costela fraturada, braço quebrado”, afirmou. A Polícia Militar (PM), conforme a artesã, também esteve na ação.

Um dos artesãos teve o braço quebrado durante ação da fiscalização (Reprodução/Facebook)

A defensora pública Júnia de Carvalho classificou o episódio como uma “barbárie”. Para ela, ao não poderem expor sua arte na feira, os hippies são “excluídos da sua própria casa”. Procurada, a administração municipal se limitou a citar que os hippies não se enquadram na Lei do Artista de Rua e garantiu que não houve agressão dos fiscais.

Para o subcomandante do 1º Batalhão da PM, André Domiciano, os militares agiram dentro da legitimidade. “Existe uma lei que regula o trabalho dos artesãos, os hippies, que diz que eles podem ficar na Praça sete e na Praça da Rodoviária. Os policiais foram chamados para auxiliar na ação dos fiscais, que advertiram os envolvidos para retirar os materiais da Afonso Pena”, disse.

Medo

Apesar da fiscalização e da falta de resolução do impasse, os artesãos hippies afirmam que continuarão indo à feira. “Neste domingo, estamos indo com tudo. Mas estamos com receio de sofrermos novamente agressões. Na reunião [do dia 11] foi dito que a ordem é para os fiscais fazerem apreensão do nosso material”, conta Juliana.

Na semana após a agressão, no último domingo, os artesãos realizaram um ato de resistência contra a ação dos fiscais. Após um acordo com representantes da PBH, os hippies foram autorizados a expor das 11h às 13h30m na Afonso Pena. “Não houve nenhum conflito, mantivemos a calma até termos a autorização. Ficamos até o horário definido, pois após este momento haveria maior tráfego de veículos dos feirantes”, disse.

Novas reuniões entre artesãos e prefeituras serão agendadas, mas ainda não há previsão para quando isso acontecerá.

Vitor Fórneas[email protected]

Repórter do BHAZ de maio de 2017 a dezembro de 2021. Jornalista graduado pelo UniBH (Centro Universitário de Belo Horizonte) e com atuação focada nas editorias de Cidades e Política. Teve reportagens agraciadas nos prêmios CDL (2018, 2019 e 2020), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).

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