Um procedimento inédito no âmbito da UFMG deve ajudar a elucidar a história dos povos indígenas mineiros: uma estrutura funerária em que uma criança indígena foi sepultada há pelo menos 600 anos passou por uma tomografia computadorizada nesse sábado (1°), no Hospital das Clínicas, em Belo Horizonte.
A estrutura funerária foi identificada em 2004, no sítio arqueológico Lapa do Caboclo, em Diamantina, durante escavações. Desde então, ela integra o acervo do Museu de História Natural e Jardim Botânico (MHNJB) da UFMG.
As imagens geradas no exame serão utilizadas em pesquisa de mestrado que tem sido desenvolvida pela arqueóloga Gabrielle Ferreira, indígena do povo Borum-Kren com ancestrais Puri, no Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAn) da universidade.
Os resultados da tomografia, que vão compor o acervo do MHNJB, também serão utilizados, posteriormente, para consulta da equipe de conservação e restauração do museu.
Exemplar único
De acordo com a UFMG, a estrutura funerária analisada é composta de um estojo cilíndrico de cerca de 70 centímetros de comprimento e 30 de largura, feito de casca de árvore, na qual os ossos da criança, pintados de vermelho, foram depositados.
Numa das extremidades, há couro, e, na outra, há palha. Ainda não se sabe se a terra atualmente presente na estrutura é do momento do sepultamento da criança ou se foi ocupando espaço com o tempo e revirando os ossos.
Segundo estimativa dos pesquisadores, a estrutura funerária pode ter entre 600 e 1.300 anos. Ela foi uma das poucas estruturas arqueológicas não atingidas pelo incêndio que ocorreu em 2020 em uma das reservas técnicas do MHNJB.
A estrutura foi preservada porque estava localizada, à época, na exposição de arqueologia, que não foi atingida pelo fogo. Por ser um exemplar único, ela revela detalhes que ainda não eram conhecidos pela arqueologia brasileira.
Contato com a história
Por meio da tomografia computadorizada, as imagens e vídeos resultantes poderão ser utilizados para análise dos ossos depositados, a fim de que se possa traçar aspectos da história de vida da criança indígena e de seu povo, ainda não identificado.
A pesquisadora responsável explica que a tomografia é um dos processos que vão contribuir para que ela tenha “uma conversa mais íntima com os ossos da criança”. “Aquilo que, na ciência, a gente chama de análise, eu gosto de chamar de conversa, porque os ossos falam bastantes coisas”, diz Gabrielle Ferreira.
“Eu poderia escavar a estrutura e retirar os ossos da casca de árvore para poder dialogar com esses ossos, mas a gente pensou na tomografia para ter uma ideia de como está a disposição dos ossos dentro desse estojo e, talvez, visualizar também quais ossos temos dentro da estrutura. De cima, eu consigo ver e identificar alguns, como a escápula e o rádio, mas a tomografia pode dar uma ideia de quais outros tipos de ossos estão lá”, aponta.
Com a pesquisa, a estudante quer ampliar as discussões no panorama bioarqueológico em Minas Gerais, mas, acima de tudo, entender a história dessa criança e o que ela tem a lhe dizer.
“”Eu tenho uma premissa de trabalho descolonial, porque, como uma mulher indígena, eu não consigo separar da minha pesquisa e do meu ser que os esqueletos são pessoas, crianças. Essa separação acontece muito durante as pesquisas bioarqueológicas: as pessoas se tornam materialidade. Mas não é qualquer pessoa que se torna materialidade. Nossos corpos indígenas e os corpos de pessoas pretas costumam se tornar essa materialidade”, sustenta.