Na manhã do último domingo (4), Ferreira Gullar, um dos maiores autores brasileiros, faleceu no Rio, aos 86 anos. Ferreira já estava internado há 20 dias e morreu vítima de pneumonia. Além de poeta, ele também era escritor, tradutor, crítico de arte e teatrólogo e deixou um acervo de importantes obras, como “Poema Sujo” e “Borbulhas de Amor”, canção famosa na voz de Fagner. O escritor deixa dois filhos, Luciana e Paulo, oito netos, e a companheira Cláudia, com quem vivia atualmente.
Em um dos seus poemas mais famosos, Ferreira escreveu que a arte existe porque a vida não basta. A morte levou essa grande personalidade, mas a sua arte nunca morre. Para homenageá-lo e apresentar um pouco das suas obras, selecionamos aqui 5 grandes poemas de sua autoria.
Confira!
Dois e Dois são Quatro
Como dois e dois são quatro
Sei que a vida vale a pena
Embora o pão seja caro
E a liberdade pequena
Como teus olhos são claros
E a tua pele, morena
Como é azul o oceano
E a lagoa, serena
Traduzir-se (trecho)
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?
Não há vagas
O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.
Cantiga para não morrer
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
O que se foi
O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.
Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.
Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?