‘Seu ex mora no seu útero’: Post que sugere ‘limpeza uterina’ viraliza e acende discussão sobre liberdade sexual

limpeza uterina
O post recomenda uma ‘limpeza energética’ do útero para desatar os bloqueios emocionais e sexuais das mulheres (FOTO ILUSTRATIVA: Banco de imagens/Unsplash)

Se você entrou nas redes sociais nos últimos dias, deve ter esbarrado com uma afirmação no mínimo curiosa e que foi alvo de muita polêmica. “O seu ex continua morando no seu útero!”, anuncia um post no Instagram, que sugere que o órgão reprodutor feminino possui uma “memória celular” capaz de guardar resquícios de ex-companheiros. O post ainda recomenda uma “limpeza energética” do útero para desatar os bloqueios emocionais e sexuais das mulheres. Mas o que era pra ser uma solução, acabou se tornando uma longa discussão sobre os mecanismos de controle do corpo feminino.

“Você já parou pra refletir que o seu ex ainda mora no seu útero? (…) Não apenas o seu ex, mas todos os seus exs, todos os homens o qual você já manteve relacionamento sexual”, diz o autor do post, que teve o nome borrado.

“Deixa eu te explicar: o nosso útero guarda as memórias celulares de tudo que vivemos no amor e na cama, além do nosso histórico familiar”, acrescenta a publicação que tem circulado nas redes sociais desde segunda-feira (6).

Ao reportar o post para o Twitter, uma usuária ressalta que ele acaba reforçando a culpabilização da mulher sobre sua liberdade sexual. “Quando a gente pensou que estávamos nos libertando da culpa cristã, surge a culpa mística”, escreveu.

‘Pretensa libertação sexual’

A pedido do BHAZ, a professora de história da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Mariana de Moraes Silveira, analisou a publicação, que, para ela, reforça vários ideais conservadores sobre o corpo da mulher, fortalecidos ao longo da história.

“Existiram muitas formas, historicamente, de significar as diferenças sexuais e atribuir papeis a elas. O post parte de uma pretensa libertação sexual para, justamente, reafirmar o controle sobre os corpos. Claro, numa chave bastante distinta do que faz a Igreja Católica, por exemplo”, explica.

Essa tentativa de controle do corpo feminino acontece desde o século passado e, sobre isso, a professora cita o trabalho conduzido por uma de suas colegas. Em 2019, a também historiadora Eliza Toledo ganhou um prêmio com uma pesquisa que revela como as mulheres eram o principal alvo dos procedimentos de lobotomia – intervenção cirúrgica no cérebro a fim de tratar casos graves de esquizofrenia, no século XX.

“O estudo mostra que esse procedimento médico brutal era feito, sobretudo, em mulheres que não necessariamente tinham uma doença psíquica. Eram feitos me mulheres que tinham um comportamento sexual mais livre, comportamentos considerados inadequados”, explica a professora.

“Elas acabavam internadas nessa instituição [Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo] e passando por procedimentos que tinham consequências muito lamentáveis”, acrescenta.

O ‘jovem místico’ tem que acabar?

Para a historiadora, o post faz parte de uma tendência moderna do feminismo, que carrega noções radicais a respeito do papel social das mulheres. Na visão da especialista, na tentativa de assegurar os diretos das mulheres, esse movimento acaba as limitando ainda mais.

“Essa propaganda da uma limpeza uterina terapêutica acaba se valendo de alguns mecanismos retóricos do feminismo contemporâneos. Não é algo que se apresenta como um discurso conservador, que pretende restringir a liberdade da mulher, mas que no fundo tem esse tipo de efeito”, ressalta Mariana.

Ainda segundo ela, a era do “jovem místico” que tem ganhado muita notoriedade na internet parte de uma noção bastante limitada do que, de fato, significou historicamente a bruxaria. “Na época moderna, existe um estereótipo das bruxas que gera uma noção muito simplista à ideia de bruxaria. Ela era algo muito mais complexo do que essas frases que ouvimos hoje em dia, como ‘somos as netas das bruxas que que vocês não conseguiram queimar'”, explica.

“Esse movimento que vemos muito hoje em dia diz mais sobre o nosso período do que sobre o que foi essa experiência da bruxaria na antiguidade. Isso é mais um sintoma de uma desorientação dos nossos tempos do que algo que dialoga com referências do passado”, acrescenta a historiadora.

‘Memória celular’ existe?

Depois de ler o post, muita gente ficou na dúvida se, realmente, o útero é capaz de armazenar memórias sexuais. Em uma continuação da publicação, a autora ainda sugere que as experiências das mães e avós também ficam guardados no órgão feminino.

O BHAZ conversou com o ginecologista Eduardo Siqueira Fernandes, da Sogimig (Associação de Ginecologista e Obstetras de Minas Gerais), que disse que não há comprovação científica de uma “memória celular” no útero.

“Sob o ponto de vista fisiológico e biológico, não existe essa memória passada pelas parcerias dessa mulher. Não tem como alegar que o útero, como é colocado no post, guardaria memória das parcerias antigas. Biologicamente isso não se explica”, enfatiza o médico.

Já a psiquiatra e doutoranda em medicina molecular, Christiane Carvalho, explica que existe uma teoria de que as células sejam capazes de armazenar características específicas. Essa ideia, no entanto, não se aplica a memórias sexuais.

“A gente vê muito isso em transplantes. Às vezes, quando o órgão é transplantado de uma pessoa pra outra, as células podem levar algumas características e informações dentro do código genético e passar para a pessoa que o está recebendo”, explica ao BHAZ.

‘É preciso compreender os padrões’

Para a psiquiatra Christiane Carvalho, a publicação viral ainda incita certa “comodidade” no que diz respeito ao tratamento psicológico de problemas emocionais. Ela explica que a escolha de parceiros amorosos seguem padrões, que podem sofrer influência de eventos estressantes e traumas.

“Esse discurso traz a sensação de imobilidade, no sentido de que, já que a mulher teve esses parceiros, ela tem que fazer uma limpeza no útero dela e não buscar compreender melhor os padrões que a levaram a esses relacionamentos”, pondera a especialista.

“As nossas vivências sim influenciam nossos tipos de parceiros e aceitar que isso seria consertado, com uma limpeza uterina, faz com que a mulher não busque formas de entender esses padrões para que eles não se repitam. A gente fala muito de dedo podre, mas não é isso”, acrescenta.

Violência dupla

Pelas redes sociais, diversos internautas criticaram a negligência do post em relação às vítimas de violência sexual, que, muitas vezes, carregam traumas para o resto da vida. De acordo com Christiane, é importante que essas mulheres entendam que não têm culpa de terem passado por essas situações.

“O abuso, mais do que uma memória celular, ele vai fazer com que a mulher carregue traumas emocionais. Por isso, é importante que ela consiga entender que ela não sente tudo isso por uma vontade própria”, ressalta a psiquiatra.

“A tendência desse tipo de discurso de limpeza uterina é de uma solução imediata para esses traumas, e a gente sabe que não é assim. Existem índices altos de estresse pós-traumático após um evento de abuso sexual, de depressão, ansiedade. Então é um tratamento multidisciplinar”, finaliza.

Tratamento não recomendado

Para além do discurso, o post também acendeu um alerta sobre tratamentos terapêuticos que podem acabar comprometendo a saúde íntima das mulheres. A tal “limpeza uterina” seria uma vaporização do órgão com ervas e chás para uma limpeza energética.

O médico ginecologista Eduardo Siqueira alerta que tratamentos desse tipo podem ter consequências graves. “É uma orientação que esses tipos de vaporização não sejam feitos para limpeza uterina. Justamente pelo risco de infecção que pode trazer, ou até mesmo de queimaduras”, explica.

“Elas não são recomendadas do ponto de vista científico. Inclusive, a gente nem orienta lavagens ou limpezas internas, a partir do canal vaginal. Toda limpeza deve ser feita externamente”, acrescenta Eduardo.

‘Aluga-se útero em Belo Horizonte’

Para além das análises que surgiram após o post viralizar, centenas de pessoas também transformaram o tratamento alternativo em piada. “Aluga-se útero em Belo Horizonte. R$ 700,00 com área de lazer inclusa. Disponível para ex-namorados. Interessados entrar em contato pelo WhatsApp”, brincou um internauta.

“Usando camisinha, além de prevenir ISTs e gravidez indesejada, você também previne o usucapião do seu útero. Pense nisso”, escreveu outra pessoa. Veja a repercussão:

Edição: Giovanna Fávero
Larissa Reis[email protected]

Graduada em jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2021. Vencedora do 13° Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, idealizado pelo Instituto Vladimir Herzog. Também participou de reportagem premiada pela CDL/BH em 2022.

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