Não está perdido o elo: Emicida dá início à turnê de despedida de ‘Amarelo’ por BH

Artista comoveu o público com a ternura do último disco, homenageou ídolos da música mineira, e se arriscou como instrumentista (Jonas Rocha/BHAZ)

O álbum póstumo de Tupac Shakur, “The Don Killuminati”, reúne inúmeras curiosidades do universo hip hop. Uma delas, a diss track ao trio nova-iorquino De La Soul, que criticava o estilo de vida gangsta do rapper da costa oeste. Para o De La, o lifestyle de Pac promovia valores típicos de gangues, materialismo e violência, por isso era alvo de insulto. Virtuoso ou não, fato é que o gangsta rap de Tupac e muitos outros serviu de inspiração para trabalhos vindouros: em 2023, o hip hop completou meio século de existência, enquanto o rap se tornou o segundo gênero mais ouvido do Spotify.

Mesmo atacada, a crítica do De La Soul resistiu à intempérie dos tempos, e, tanto quanto o legado de Shakur, também serviu de inspiração para trabalhos que vêem na doçura um caminho melhor. Um deles, o terceiro disco de estúdio de Emicida, “Amarelo”, que circula entre nós há cinco anos. Na noite de ontem (8), o paulista fez, em Belo Horizonte, seu primeiro show pela turnê de despedida do álbum, mostrando toda a possível ternura do hip hop e pintando a cidade de uma só cor.

Aposta Alta

Lançado em 1996, “Stakes is High”, quarto álbum do De La Soul, deu continuidade à postura crítica dos antecessores “3 Feet High and Rising” e “De La Soul Is Dead”, de 1989 e 1991, respectivamente. A escalada de violência, tensão e ostentação do rap americano à época preocupava os nova-iorquinos, por isso, a tríade apresentou um compilado de letras ácidas e comicidade indispensável. Apesar da decepção comercial, “Stakes is High” foi fundamental para pavimentar o caminho de outro disco, brasileiro, que só seria lançado 23 anos mais tarde, mas bateria na mesma tecla do passado.

Em 2019, o rapper paulista Emicida lançou “Amarelo”, seu terceiro álbum de estúdio, após uma série de EPs e mixtapes. Segundo o próprio artista, o trabalho nasceu da vontade de contar histórias, e não apenas de compilar uma sequência de músicas. Entre os lançamentos de “Amarelo” e “Stakes”, o hip hop mudou bastante, mas nunca deixou de ser um lugar frequentado por gente “durona” — ou, pelo menos, gente que precisava se passar por isso. Foi neste contexto que “Amarelo” apresentou um balanço reflexivo da situação das minorias no Brasil.

Capas dos discos “Stakes is High”, do De La Soul e “Amarelo”, de Emicida (Reprodução)

Talvez por encontrar um país mega polarizado ou entender que nem sempre o hip hop deve estar vinculado à raiva, Emicida construiu um projeto de afeto. Fez com que sua arte fosse uma ilha de generosidade em meio a tantas outras ilhas de ódio destilado, como o De La Soul acreditava que devia ser. Da capa aos feats, o compositor fez de “Amarelo” um espaço de acolhimento, que não demorou a se tornar uma plataforma de emancipação. Pouco mais de um ano após o lançamento, “Amarelo” teve seus valores e reverberações registradas no documentário “É Tudo Pra Ontem”, da Netflix.

Presságio

Mas o último capítulo dessa história ainda está sendo escrito. Nessa sexta-feira (8), Emicida deu início à gira final do álbum, em Belo Horizonte, no Arena Hall. Antes de seguir viagem pelo Brasil, o artista se apresenta mais uma vez em BH, neste sábado (9), com a promessa de lotação máxima da casa.

E os confirmados para o espetáculo desta noite que se preparem, pois a tour de “Amarelo” faz jus ao tamanho do impacto do disco na cena. Mais do que um produto, e bem mais, Emicida oferece ao público uma viagem pela história da música brasileira. A quantidade de instrumentos sobre o palco apagado, antes mesmo do show começar, antecipava a diversidade rítmica da apresentação.

Às 20h38, um vídeo exibido nos telões do Arena atraiu os olhares dispersos. Nele, o paulista revisitou ícones da música mineira: Milton Nascimento, Skank e até o Viaduto Santa Tereza, de expressão imaterial, lar do Família de Rua e do Duelo de MCs. “Foi Minas que pariu o Brasil”, disse Emicida em locução, antes de apresentar Djonga, Marina Sena e Lagum como novos representantes de um legado insigne.

Raízes

O fim do vídeo deu início à jornada de transformação da noite. “É Tudo Pra Ontem” foi a faixa escolhida para a abertura do show, título que oficialmente não integra o disco “Amarelo”, mas é tido como uma extensão do projeto. A sequência inicial ainda emendou “A Ordem Natural das Coisas” e “Corra e Olhe o Céu”, de Cartola, antes da pausa para dar boas-vindas ao público.

Aliás, a presença de Cartola já no início deu o tom do primeiro ato da apresentação, fortemente marcado pela alegria do samba. Pixinguinha e João de Barros também foram homenageados pelo paulista, na interpretação de “Carinhoso” que se misturou à de “Chapa”, do disco “Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa” (2015).

Além de exibir os dotes instrumentistas, assumindo flauta e agogô aqui e acolá, deu tempo de Emicida se aventurar, num primeiro momento, por “Here Comes the Sun”, dos Beatles, antes de revisitar “Madagascar” e “Baiana”, também do disco de 2015. Muito mais do que apenas o título de uma faixa, baiana também é a alma do artista, que não deixou de reverenciar Gal Costa, Gilberto Gil, Caetano Veloso e Dorival Caymmi, mesmo longe do mar.

“A Ordem Natural das Coisas”, do disco “Amarelo” (Thiago Cândido/BHAZ)

Da Raiva

Quem desconhece a discografia de Emicida, ou tem “Amarelo” como referência única, deixa passar a importante trajetória do compositor. Se no disco ele esbanja ternura, nem sempre foi assim. Seus primeiros trabalhos, lançados entre 2009 e 2013, refletem a dura e remota realidade vivida quando o rap ainda não vingava. Foi neles que Emicida usou da raiva como combustível para pavimentar sua ascensão.

O segundo ato do show relembrou esses momentos. “Hoje Cedo”, faixa do disco “O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui” (2013), abriu a sessão de exorcismo de demônios como a fome, o racismo e a violência policial. A fila seguiu por “Ooorra”, “Triunfo” e “A Rua É Noiz”, da mixtape de estreia do paulista, passando por “Todos Os Olhos Em Nóiz” e “Eminência Parda”.

Antes de esboçar o fim da apresentação, deu tempo de Emicida parabenizar a linguista, pesquisadora e escritora afro-brasileira Conceição Evaristo pela posse na Academia Mineira de Letras. Nessa sexta-feira (8), ela assumiu a cadeira de número 40 da AML, em cerimônia que foi transmitida ao vivo pelo YouTube. À essa altura, o respeito do rapper pela cultura mineira já havia ganhado o público. Quando ele discursou sobre a importância de preservar a Serra do Curral, visada pela mineradora Tamisa, o Arena se desfez em aplausos.

Epílogo

Após duas horas de um show inebriante, Emicida anunciou o ponto alto da noite: “Principia”, faixa que abre “Amarelo”. Em BH, o artista assumiu o papel do Pastor Henrique Vieira na interpretação da oração final da música. Quase como um sacerdote, Emicida, de fato, serviu-se. Desceu do palco e desfilou pela multidão que tentava, a qualquer custo, ao menos chegar perto da figura. Por um momento, voltou a ser Leandro Roque de Oliveira, e, antes de deixar a cena, cravou a mensagem que toda a trajetória veio dar: “tudo, tudo, tudo que ‘nóis’ tem é ‘nóis'”.

Quando muitos se davam por satisfeitos, o conjunto voltou ao palco. Foi o momento de descontração, quando a quarta parede já estava despedaçada. Outras oito faixas ainda foram executadas, totalizando duas horas e meia de espetáculo. Foram elas: “Ubuntu Fristaili”, “Casa”, a surpreendente “Another Brick on the Wall”, do Pink Floyd, “Gueto”, “Eu Só Quero É Ser Feliz”, de Cidinho e Doca, “A Chapa É Quente”, “Libre” e “Passarinhos”.

No resumo da ópera, a sensação é de ter vivido um momento histórico. Muitos outros capítulos virão, é verdade, mas a gira de “Amarelo” soa como um culto de fraternidade. Algo que ultrapassa a temporalidade, mas preenche com espiritualidade. Emicida, pastor do encontro, assume seu papel de entidade, acompanhado de produção visual e musical impecáveis. De fato, não está mais perdido o elo. O vínculo de todas as cores, sons e pessoas comprovam que o amor é mesmo “Amarelo”.

Edição: Lucas Negrisoli
Thiago Cândido[email protected]

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais. Colunista no programa Agenda da Rede Minas de Televisão. Estagiário do BHAZ desde setembro de 2023.

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