Do Santa Tereza à Cogumelo: Sepultura volta às raízes para último ato

Banda se despede dos palcos com turnê “Celebrating Life through Death”, mas legado é perpétuo (Reprodução/Redes Sociais)

Formada em 1984, no bairro Santa Tereza, em Belo Horizonte, a banda de heavy metal Sepultura estampou, ao longo das últimas quatro décadas, o rock brasileiro na principal prateleira da música mundial. Forjada pelos irmãos Max e Iggor Cavalera, que deixaram o grupo em 1996 e 2006, respectivamente, a banda tem sua história intimamente ligada ao período de efervescência do metal em Minas Gerais. Nesta sexta-feira (1º), o Sepultura dá início, na sua terra natal, à turnê de despedida dos palcos, mas seu legado é perpétuo.

Tudo começou na rua Dores do Indaiá, 267, onde os irmãos Cavalera moraram na adolescência. A casa ficava a dois quarteirões de outra esquina emblemática para a música brasileira, o encontro das ruas Paraisópolis e Divinópolis, marco inicial do Clube da Esquina. Atualmente, a casa não existe mais. Deu lugar ao Edifício Dona Josefina, um conjunto de apartamentos um tanto menos simbólicos que a construção de outrora.

Antes de se desfazer, entretanto, o canto dos Cavalera era palco de reuniões de metaleiros do Brasil inteiro, jovens que vinham tocar na cena metal de Belo Horizonte e apareciam por lá para ensaiar. Um dos vizinhos, Paulo Xisto, integrante da formação original e único membro a resistir à intempérie dos 40 anos no Sepultura, era morador do bairro e dividia com os amigos de banda a responsabilidade de sediar as sessões de ensaio dos “camisas pretas”.

Foto do Sepultura na década de 1980
Além dos Cavalera e Paulo Xisto, banda contava com Wagner Lamounier nos vocais. Em 1985, o frontman deixou a banda, abrindo espaço para o guitarrista Jairo Guedz (Reprodução/Redes Sociais)

Mas a história do Sepultura se entrelaça à de BH para além de um simples endereço (ou endereços) no bairro de Santa Tereza. Na verdade, pode-se dizer que a primeira casa dos meninos como banda ficava mesmo no coração da capital, na avenida Augusto de Lima, número 555. Diferente do QG dos Cavalera, essa resiste e abriga, há 44 anos, jovens apaixonados pelo gênero musical mais popular do mundo. Se não foi ali, na histórica Cogumelo Records, que o Sepultura nasceu, indiscutivelmente, foi lá que a banda cresceu. E cresceu muito.

Da crise ao selo

Antes de mergulhar nos primeiros anos da longeva carreira do Sepultura, é preciso introduzir a tal Cogumelo Records, que, para as gerações boomer e X belo-horizontinas, dispensa apresentações. A casa foi fundada em 1980, inicialmente como uma loja de discos que abraçava extensa variedade de gêneros musicais.

Não demorou muito para que João Eduardo Faria e Pat Pereira, proprietários do estabelecimento, notassem no rock a fonte mais rentável dentre os estilos, e investissem no lugar como o point oficial dos roqueiros mineiros.

“E o pessoal falava ‘loja de LP em plena crise do petróleo? Doidera!’, mas acontece que a gente gostava de rock e aquela coisa toda, então encaramos”, conta João.

“Com o tempo, nós percebemos que a loja concentrava uma procura maior de títulos de New Wave of British Heavy Metal, que é algo como Iron Maiden e Motorhead, e, com o advento do Rock in Rio, que iria acontecer em oitenta e cinco, aquela coisa virou algo muito grande”.

Foi da escolha de caracterizar a loja como um espaço dedicado ao rock que os caminhos da Cogumelo e do Sepultura se cruzaram. Na oferta de LPs de movimentos underground, como o thrash e o death metal europeu, a loja atraiu a atenção dos irmãos Cavalera e de muitos outros entusiastas com a ideia de fazerem a própria música.

“E o mineiro, entre ouvir e ser influenciado, leva questão de segundos. No outro dia, já tá tocando a música. No terceiro dia, já tá tirando na própria levada. O músico mineiro sempre foi muito talentoso”, brinca João.

Cogumelo Records, loja de LPs de BH
Loja era referência musical para geração de roqueiros belo-horizontinos (Arquivo Pessoal)

No auge da excitação musical na cidade, em 1985, a Cogumelo Records deu um passo à frente nessa coisa de trabalhar com música. Investiu na criação do próprio selo, e, já de cara, convidou duas bandas para participarem de um split álbum: Sepultura e Overdose.

Inicialmente, a ideia era de um disco completo do Overdose, mas, no jeitinho, os conterrâneos conseguiram espaço no LP.

Gravado e produzido em apenas dois dias, o EP Bestial Devastation abriu as portas do mundo para o Sepultura. Pela Cogumelo, a banda lançou, ainda, outros dois trabalhos: os álbuns completos Morbid Visions (1986) e Schizophrenia (1987), que não só exportaram o som do grupo para países de todo o globo, mas consolidaram os mineiros como precursores de uma vertente ainda mais sombria do metal, o black metal.

Capas de álbuns do Sepultura
Bestial Devastation (1985), Morbid Visions (1986) e Schizophrenia (1987) (Reprodução/Redes Sociais)

No auge, as raízes

Após a estrondosa parceria com o selo mineiro, o Sepultura chamou a atenção da gravadora estadunidense Roadrunner Records, que firmou um contrato de sete anos com os jovens roqueiros. Era o começo de uma nova fase na carreira da banda.

João conta que a ruptura entre o Sepultura e a Cogumelo aconteceu de forma tranquila. “Eu disse pro Max: ‘pode fechar esse contrato, eu vou dar a maior força pra vocês’. E foi o que os diferenciou, porque a Roadrunner percebeu o potencial deles, gravou o Beneath the Remains (1987). O resto é história”, relembra o empresário.

Pela gravadora americana, o Sepultura lançou dois álbuns antes de atingir seu ápice. Arise (1991), considerado o melhor trabalho do grupo pelos fãs mais conservadores, e Chaos A.D. (1993), relacionado na lista dos 100 melhores discos da música brasileira segundo a revista especializada Rolling Stone, renderam, juntos, mais de 2 milhões de cópias vendidas.

Nessa altura do campeonato, o Sepultura já figurava entre os gigantes da cena internacional. Para o jornalista e crítico musical Terence Machado, a comparação com certos títulos de renome na mídia era injusta, porque, surpreendentemente, a banda belo-horizontina se saía melhor que eles.

“Eu vi o Megadeth em uma turnê em Belo Horizonte e achei um ‘estalinho’ perto do Sepultura. Me soou como uma banda colegial. Se o Sepultura era uma bomba atômica, o Megadeth era um ‘estalinho’ de festa junina”, brinca.

Em 1995, na crista da onda global, o grupo de heavy metal se lançou em mais um desafio: sustentar a qualidade artística após dois discos aclamados pela crítica e pelo público. Foi então que o Sepultura voltou seu olhar para as origens.

Nas raízes brasileiras, encontrou o combustível necessário para fomentar aquele que é tido como o maior trabalho da banda. Em 1996, ainda pela Roadrunner Records, foi lançado Roots, o sexto álbum de estúdio do grupo, que sacramentou o nome Sepultura na história das lendas do rock.

Arise (1991), Chaos A.D. (1993) e Roots (1996) (Reprodução/Redes Sociais)

Bloody Roots

De caráter extensivamente experimental, o disco traz participações de Carlinhos Brown, arranjador e percussionista baiano, e indígenas dos povos xavante, jasco e itsari, do Mato Grosso. O álbum também apresenta influências do então nascente nu metal, com o uso proeminente de guitarras em afinação baixa e riffs rítmicos e sincopados, ao contrário das influências industriais apresentadas em Chaos A.D..

Mais do que um passo comercial, Roots foi, sem dúvida, um dos gestos de inovação e respeito à cultura local mais expressivos da história da música contemporânea.

Terence relembra que conheceu o trabalho por um amigo que havia chegado de fora do país, surpreso com o impacto do Sepultura na cena internacional. “E ele falava: ‘cara, você não tem ideia do sucesso que eles estão fazendo lá fora. Tem pôster deles em tudo que é loja de disco'”, conta o crítico musical.

“Eu nunca tinha me conectado com o som da banda por achar meio trash, meio ‘sujão’. No Roots, aquilo me puxou. Foi ali que eu pensei: ‘cara, essa banda tá em outro nível mesmo'”.

Belo Horizonte, o berço

Dali pra frente, as coisas não foram as mesmas. Poucos meses após o lançamento de Roots, Max Cavalera deixou a banda, seguido pelo irmão Iggor, uma década depois. Até os dias atuais, o baixista Paulo Xisto segue sendo o elo remanescente da formação original, acompanhado por integrantes que, de tempos em tempos, são substituídos. Às vésperas do primeiro show da turnê de despedida do Sepultura, o baterista Eloy Casagrande deixou a banda, uma bomba que surpreendeu a todos.

Formação do Sepultura ainda com Eloy Casagrande
Última formação do Sepultura, antes do anúncio da saída de Eloy Casagrande, nessa segunda-feira. Da esquerda pra direita, Andreas Kisser, Derrick Green, Paulo Jr. e Eloy (Divulgação/Marcos Hermes)

No entanto, o legado do Sepultura, sobretudo para a cena musical belo-horizontina, segue impermeável. “O grupo foi o representante maior da música brasileira nos últimos tempos, com toda certeza. Se você fala de Brasil em qualquer país, logo eles associam ao Sepultura. Mas, além disso, ele deu relevância para outras bandas de BH, como o Sarcófago, que ficou bastante conhecido na Europa, e Overdose, que, depois, voltou para a Cogumelo e gravou ótimos discos”, aponta João Eduardo.

O proprietário da icônica loja no centro de BH destaca a força do Sepultura para quebrar as barreiras comerciais do eixo Rio-São Paulo, décadas atrás, e retomar a atenção dos brasileiros para a música feita em Minas Gerais. “Foi muito difícil pra gente chegar nos lojistas de São Paulo no começo. Eles olhavam para esses trabalhos como se eles não valessem nada. Mas o tempo trabalhou a nosso favor, junto com o público”, destacou.

Às vésperas da última turnê da banda, já com o fim das atividades previsto para 2025, Terence Machado continua se surpreendendo com a potência do título, em vários sentidos. “Eu acho impressionante o Sepultura como marca. É quase uma entidade. E foi legal ver eles se reinventarem a ponto de continuarem sendo uma banda bombástica, mesmo após a saída dos dois irmãos. O Cavalera Conspiracy (projeto tocado por Max e Iggor) não conseguiu ter o mesmo impacto, né? O poder da marca Sepultura é absurdo. Uma banda de Belo Horizonte”, finaliza.

Thiago Cândido[email protected]

Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Minas Gerais. Colunista no programa Agenda da Rede Minas de Televisão. Estagiário do BHAZ desde setembro de 2023.

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