O que aprendemos com a carta de Flavio Migliaccio: Precisamos falar sobre o suicídio de idosos

Suicídio e depressão na terceira idade: apesar de defasados, dados são alarmantes (Marcelo Camargo/Agência Brasil + Divulgação/Globo)

O fim inesperado de um espetáculo. A morte de Flavio Migliaccio, aos 85 anos, surpreendeu amigos, fãs e até mesmo familiares do ator. A notícia de que o corpo dele foi localizado em um sítio, no Rio de Janeiro, assim com uma carta atribuída ao artista, levanta um intenso debate.

A saúde mental de idosos, depressão e o suicídio de pessoas na terceira idade estão sob holofotes, ao longo dos últimos dias, principalmente nas redes sociais. Mesmo considerados delicados, tais temas devem ser discutidos, cada vez mais, de forma responsável. É o que dizem dois especialistas da psicologia e psiquiatria ouvidos pela reportagem do BHAZ.

“Nosso desafio social é ressignificar a questão de quem é o idoso, quem é a pessoa idosa, quem é aquele para além da sua idade”, diz o psicólogo e psicanalista Eduardo Lucas Andrade. “Precisamos resgatar as qualidades que eles têm, o conhecimento adquirido, histórias e vínculos sociais. A ressignificação do idoso é um trabalho de saúde mental”, pondera.

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E razões para pensar a respeito não faltam: a depressão ocorre muito mais em pessoas mais velhas e as taxas de autoextermínio entre idosos são alarmantes, o que pode ficar ainda pior com o passar dos anos e o envelhecimento da população. Divulgados em 2014, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontam que, dos quase 12 milhões de brasileiros diagnosticados com depressão, 11% correspondem a pessoas com idades entre 60 e 64 anos.

Já o Boletim Epidemiológico de Tentativas e Óbitos por Suicídio no Brasil, divulgado em 2017 pelo Ministério da Saúde, mostra uma alta na taxa de suicídio entre idosos com mais de 70 anos. Nesta idade, foram registradas 8,9 mortes por 100 mil habitantes entre 2011 e 2016. No mesmo período, 62.804 pessoas cometeram autoextermínio: 79% eram homens e outros 21% mulheres.

(Reprodução/Sistema de Informação sobre Mortalidade – 2017)

Embora desatualizados (leia sobre defasagem ao fim do texto), os dados apresentam um preocupante panorama a respeito da saúde mental de pessoas idosas no Brasil.

‘Coisa de velho’

Para o psicanalista Carlos Eduardo Leal, mudanças de comportamento podem sinalizar a necessidade de redobrar a atenção com idosos. E, ao contrário do que alguns pensam, tais alterações não são “coisa de velho” e podem indicar transtornos mentais, entre eles depressão.

“A depressão é caracterizada pela falta de sentido para a vida, quando a vida começa a deixar de fazer sentido. É um alerta fundamental. Perda de apetite, insônia prolongada e repetitiva, irritabilidade, sentimentos de ansiedade e cansaço extremado são alguns dos indicativos”, conta.

“É preciso ter atenção, principalmente a família e os amigos, pessoas que são mais próximas do idoso. Dificilmente uma pessoa que está prestes a se suicidar não dá sinais de alerta. Podem existir casos, mas é necessário estarmos preparados para perceber esses sinais”, pondera.

Estigma social

Além prestar atenção aos sinais, é necessário repensar a construção da velhice. É o que propõe Eduardo Lucas Andrade. “Uma sociedade tão produtiva demanda produção, como se existir fosse produzir. Esse lugar em que o idoso é deixado de lado, socialmente, é como se ele já estivesse morto. Aquele que não mais existe para o sistema e para várias pessoas”, reflete. “Como reinserir o idoso no sistema capitalista em que vivemos? A sociedade o exclui por estar fora do sistema. Pejorativamente, o idoso é colocado em outro patamar”, diz.

Eduardo considera que o estigma social enfrentado pelos idosos e a depressão que os acomete podem estar, ou não, relacionados. “Uma coisa acaba alimentando a outra, apesar de poderem ocorrer de forma separada. Por exemplo: uma pessoa que viveu a vida toda e é confrontada com incapacidade, abandono, começa a perder o sentido de seguir. Essas perdas que o sujeito não está preparado para lidar podem remeter a pensamentos e ideações suicidas”, relata.

“É preciso observar o histórico de vida da pessoa, o ritmo de cada um, mas de fato é importante oferecer, convidar e dar oportunidade ao idoso. Muitas vezes, por crer que não conseguem, eles não tentam. Aquele que não tem mais lugar de trabalho, onde contribuir, sofre um peso a nível psicológico no sentido que parece que nada mais existe. São fatores de risco e não fatores da velhice, mas de como nós temos construído a velhice”, diz.

O que diz o espelho?

Na terceira idade, idosos também se deparam com as marcas do tempo nos próprios corpos. E, para muitos, observar a chegada da velhice pode ser insuportável. Diante do espelho, o que importa, no entanto pode ser uma questão de perspectiva.

“O envelhecimento é um fato que não se pode negar, é visível para o próprio idoso. Não é difícil encontrarmos relatos de idosos que não querem se ver no espelho mais, é um mecanismo de negação da mortificação do corpo”, explica Carlos.

É possível envelhecer com saúde e autoestima (Reprodução/Pixabay)

Para o especialista, a realidade é o melhor meio para se lidar com o envelhecimento. “É preciso valorizar o que ainda tem de vida, do que potencialmente se pode fazer, as histórias e vivências. Você não pode negar para o idoso o cabelo branco, a pele flácida e as rugas, mas as rugas são parte de uma história. As marcas não devem ser apagadas, mas valorizadas”, afirma.

Eduardo, por sua vez, diz que é preciso reinventar-se diante dos limites do próprio corpo. “Entender as limitações é essencial, o que também vale para os jovens. É preciso resgatar uma relação com o corpo que vise saúde e não potência. O corpo pode não ter mais força, mas ainda tem prazeres, ainda tem o que se fazer. O ideal é olhar sob a ótica do que pode ser feito e não apenas do que se perdeu”, pondera.

Toda vida importa

“Uma pessoa morre a cada 40 segundos por suicídio” em todo o mundo, disse o diretor-geral da OMS (Organização Mundial de Saúde), Tedros Adhanom Ghebreyesus, em 2019. 

“Toda morte é uma tragédia para a família, amigos e colegas. No entanto, suicídios são evitáveis. Chamamos todos os países a incorporarem estratégias comprovadas de prevenção ao suicídio em seus programas nacionais de saúde e educação de maneira sustentável”, completou Tedros às vésperas do Dia Mundial para Prevenção do Suicídio, em 10 de setembro do ano passado.

O ato de tirar a própria vida não tem pesos diferentes, seja aos 20 ou aos 70 anos. O suicídio é considerado um problema de saúde pública e deve ser encarado como tal. Afinal, toda vida importa. Especialistas da área, Eduardo e Carlos concordam que o afeto e uma escuta acolhedora são muito importantes para a saúde mental dos idosos.

“É preciso quebrar a resistência e não perder a paciência com o idoso. Pois é na impaciência que começa a não-escuta. Trabalhar a consciência e a escuta é fundamental”, diz Eduardo Lucas Andrade. “Cercar a pessoa de diálogo e conversa é uma forma de dar esperança a ela. É muito importante fazer essa ponte entre o idoso e a esperança, entre o idoso e a vida, entre o idoso e uma terapia”, afirma Carlos Eduardo Leal.

Não julgue, acolha

Assim como não buscar ajuda, o julgamento de terceiros também pode agravar quadros de depressão e afetar pessoas com ideações suicidas. O mais importante é, de fato, acolher. “É preciso quebrar a resistência e não perder a paciência com o idoso, é aí que começa a não-escuta. Trabalhar a consciência e a escuta é fundamental”, pondera Eduardo.

“Ninguém tem garantia de quanto tempo irá viver, mas temos fantasia. No caso dos idosos, a gente tem a fantasia de que a morte está próxima. É essencial olhar o idoso em um lugar de vida, de contribuições. Não se trata de romantizar o ser idoso, mas de perceber que naquele monte de perda há também o que se ganhar”, propõe o profissional.

Idosos devem ser vistos com “olhar de vida”, diz especialista (Arquivo/EBC)

Já Carlos Eduardo Leal diz que o ideal é reinserir os idosos nos laços afetivos e sociais. “Seja com o neto, com a família, ou o filho. A desesperança e a falta de sentido são rompimentos com os laços. A expressão ‘ninguém solta a mão de ninguém’ é fundamental para o idoso, para que ele se sinta vivo”, explica.

Em tempos de pandemia do novo coronavírus, a distância também pode afetar as relações – e não necessariamente para pior. “Isolamento social não é abandono, muito pelo contrário. Isolamento social é cuidado. Então, diante da distância, o ideal é estreitar o contato por meio da tecnologia, apresentá-la aos idosos e usá-la para aproximar é algo interessante”, diz Eduardo.

Cartas

Antes de morrer, o ator Flavio Migliaccio teria deixado uma carta de despedida que foi encontrada no mesmo sítio em que o corpo dele. O texto fala sobre como ele se sentia vivendo a velhice no Brasil e a respeito das crianças. “Cuidem das crianças de hoje”, pediu o artista.

Nas redes sociais, assim que uma imagem vazou, internautas de diferentes partes do país mostraram-se revoltados com a divulgação dela. A OMS recomenda que cartas de suicídio não se tornem públicas, já que podem criar pontos de gatilho e gerar identificação em outras pessoas.

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Para o psicólogo e psicanalista Eduardo Lucas Andrade, no entanto, o texto atribuído ao artista não tem teor de suicídio em si. “A OMS diz que cartas de suicídio não devem ser divulgas. Elas podem gerar uma carga de desesperança tão grande e um efeito cascata naqueles que já pensavam ou planejavam suicídio”, explica.

“Tem cartas que não são de suicídio. A carta divulgada diz mais sobre uma reflexão sobre a vida, ele [Flávio] trouxe justamente a esperança de repensarmos o cuidado com criança para construir uma velhice diferente”, diz. “A carta não tem aquele teor de suicídio em si, mas sim de uma vida e do que pode ser aprendido com ela. Toda regra tem sua exceção”, pondera.

Onde conseguir ajuda?

Além de manter uma escuta acolhedora e o não-julgamento, procurar ajuda profissional diante de quadros depressivos e tendências de autoextermínio também é consenso entre especialistas em saúde mental. Existem, no Brasil, diversos serviços públicos neste sentido. Confira alguns:

Mas, o que fazer quando um idoso, ou alguém em tais condições, se nega a receber ajuda? Para Eduardo Lucas Andrade, a saída continua sendo o diálogo. “O ideal é manter um diálogo e entender a resistência do idoso, as motivações para recusar a ajuda e procurar alternativas”, pontua.

“Muitos idosos têm resistência à ajuda por achar que estão incomodando. Tem aqueles que, na cultura deles, o atendimento psicológico nunca fez parte da vivência e ainda os que aceitam quando entendem que a psicologia e a psicanálise trabalham não com a loucura, aquela pejorativa, mas com a experiência de cada um”, ressalta.

Manter diálogo com idosos é fundamental (Tomaz Silva/Agência Brasil)

O atendimento com profissionais de saúde mental é importante, mas existem outras maneiras de levar qualidade de vida aos idosos. Em diversas cidades brasileiras (veja aqui), por exemplo, a LBV (Legião da Boa Vontade) atende pessoas na terceira idade em abrigos e centros comunitários de Assistência Social, por meio do programa Vida Plena.

A instituição atua, por meio de doações, no resgate à cidadania, saúde e proteção dos idosos com o objetivo de garantir a dignidade e elevar a autoestima deles. Na LBV, os idosos participam de atividades como artesanato, dança, passeios culturais e práticas esportivas.

Quer saber mais?

No dia 15 de maio, próxima sexta-feira, os psicanalistas Eduardo Lucas Andrade e Carlos Eduardo Leal participarão de uma live, por meio do Instagram, em que vão conversar a respeito de saúde mental. A apresentação “Suicídio: um limite impensável” ocorre a partir das 19h no perfil @eduatopsi.

Defasagem de dados

Dados a respeito da saúde mental dos brasileiros, idosos ou não, são escassos. Apesar dos avanços na área, os desafios ficam à mostra. Se por um lado o orçamento para a Saúde Mental aumentou 200% em 2019, por outro ainda não há pesquisas e estudos recentes que ajudem a delimitar o tamanho real do problema, assim como a quantidade de casos.

Em 2013, o governo realizou a PNS (Pesquisa Nacional de Saúde) com recorte que revelou 14,1 milhões de pessoas com diagnóstico de transtornos ou sofrimentos mentais. Seis anos depois, em agosto de 2019, o IBGE deu início à nova edição do levantamento. Apesar disso, os resultados devem ser divulgados apenas em 2021.

Para Eduardo Lucas Andrade, informações neste sentido são importantes para ajudar na elaboração de políticas públicas voltadas para a saúde mental. “No caso dos dados de suicídio, um já seria muito. Beiramos a maior causa de morte quando falamos de suicídio e muitos suicídio não são informados como tal, pelo tabu, por notificarem a causa pelo fator secundário advindo do ato e por outros motivos, inúmeros, por exemplo, são vistos como acidente e não se fala mais nisso”, diz.

O psicanalista ainda relaciona a falta de dados com a pandemia de Covid-19. “Falando em dados, temos a questão do novo coronavírus. Não levar a sério faz com que muitos elejam o suicídio disfarçado de achismos. Quem pode, deve ficar em casa. Se cuidem como der. Siga recomendações da ciência e não escutem aqueles que tratam vidas com descrédito, ainda que estes tenham poder. Dar bobeira para morte é, ao mesmo tempo, uma sutil e estrondosa forma de se matar”, pondera.

Roberth Costa[email protected]

De estagiário a redator, produtor, repórter e, desde 2021, coordenador da equipe de redação do BHAZ. Participou do processo de criação do portal em 2012; são 11 anos de aprendizado contínuo. Formado em Publicidade e Propaganda e aventureiro do ‘DDJ’ (Data Driven Journalism). Junto da equipe acumula 10 premiações por reportagens com o ‘DNA’ do BHAZ.

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