Em carta aberta, cientistas brasileiros condecorados com a Ordem Nacional do Mérito Científico renunciaram à honraria. Os 21 estudiosos abriram mão da homenagem após o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ter retirado da lista um pesquisador contrário ao uso da cloroquina contra o novo coronavírus.
A carta foi divulgada neste sábado (6) e nela os cientistas fizeram duras críticas ao governo federal. Eles destacaram a retirada dos colegas Adele Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda da lista de agraciados.
“Tal exclusão, inaceitável sob todos os aspectos, torna-se ainda mais condenável por ter ocorrido em menos de 48 horas após a publicação inicial, em mais uma clara demonstração de perseguição a cientistas”, afirmam em um dos trechos da carta.
Ciência ignorada
O negacionismo do governo também foi lembrado pelos cientistas. Lacerda foi um dos especialistas que se posicionou contrário à defesa do uso de medicamentos sem eficácia contra a Covid-19 defendidos pelo presidente da República e isso foi lembrado na carta.
“A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora a ciência, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não é condizente com nossas trajetórias científicas”.
A renúncia coletiva foi classificada como um gesto de solidariedade aos “colegas sumariamente excluídos da lista de agraciados” e “condizentes com a postura ética” dos demais. “Renunciamos coletivamente a essa indicação”. A carta pode ser lida na íntegra abaixo.
Carta dos cientistas
“Carta aberta dos cientistas condecorados com a Ordem Nacional do Mérito Científico em 03/11/2011
Os cientistas abaixo assinados, condecorados com a Ordem Nacional do Mérito Científico, em decreto presidencial de 3 de novembro de 2021, vêm a público declarar sua indignação, protesto e repúdio pela exclusão arbitrária dos colegas Adele Schwartz Benzaken e Marcus Vinícius Guimarães de Lacerda da lista de agraciados, em novo decreto presidencial na data de 5 de novembro de 2021. Tal exclusão, inaceitável sob todos os aspectos, torna-se ainda mais condenável por ter ocorrido em menos de 48 horas após a publicação inicial, em mais uma clara demonstração de perseguição a cientistas, configurando um novo passo do sistemático ataque à Ciência e Tecnologia por parte do Governo vigente.
Enquanto cientistas, não compactuamos com a forma pela qual o negacionismo em geral, as perseguições a colegas cientistas e os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência e tecnologia têm sido utilizados como ferramentas para fazer retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade cientifica brasileira nas últimas décadas.
Como bem pontuaram a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em notas divulgadas no dia 5/11/2021, a Ordem Nacional do Mérito Científico, fundada em 1993, é um instrumento de Estado para reconhecer contribuições científicas e técnicas de personalidades brasileiras e estrangeiras. A indicação de membros agraciados é realizada por uma Comissão, formada por três membros indicados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, três membros indicados pela Academia Brasileira de Ciências e três membros indicados pela SBPC. Nossos nomes foram honrosamente indicados por essa comissão, reunida em 2019. O mérito científico (como não poderia deixar de ser) foi o único parâmetro considerado para a inclusão de um nome na lista. Consideramos, portanto, gratificante nossa presença nessa lista, e ficamos extremamente honrados com a possibilidade de sermos agraciados com um dos maiores reconhecimentos que um cientista pode receber em nosso país. Entretanto, a homenagem oferecida por um Governo Federal que não apenas ignora a ciência, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não é condizente com nossas trajetórias científicas. Em solidariedade aos colegas que foram sumariamente excluídos da lista de agraciados, e condizentes com nossa postura ética, renunciamos coletivamente a essa indicação.
Outrossim, desejamos expressar nosso reconhecimento às indicações da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, entidades que têm respeito duradouro em defesa da Ciência, Tecnologia e Inovação na sociedade brasileira. Esse ato de renúncia, que nos entristece, expressa nossa indignação frente ao processo de destruição do sistema universitário e de Ciência e Tecnologia. Agimos conscientes no intuito de preservar as instituições universitárias e científicas brasileiras, na construção do processo civilizatório no Brasil.
Brasil, 6 de novembro de 2021
Assinam (em ordem alfabética)
- Aldo Ângelo Moreira Lima (UFC)
- Aldo José Gorgatti Zarbin (UFPR)
- Alfredo Wagner Berno de Almeida (UEMA)
- Anderson Stevens Leonidas Gomes (UFPE)
- Angela De Luca Rebello Wagener (PUC-RJ)
- Carlos Gustavo Tamm de Araujo Moreira (IMPA)
- Cesar Gomes Victora (UFPel)
- Claudio Landim (IMPA)
- Fernando Garcia de Melo (UFRJ)
- Fernando de Queiroz Cunha (USP)
- João Candido Portinari (Projeto Portinari)
- José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS)
- Luiz Antonio Martinelli (USP)
- Maria Paula Cruz Schneider (UFPA)
- Marília Oliveira Fonseca Goulart (UFAL)
- Neusa Hamada (INPA)
- Paulo Hilário Nascimento Saldiva (USP)
- Paulo Sérgio Lacerda Beirão (UFMG)
- Pedro Leite da Silva Dias (USP)
- Regina Pekelmann Markus (USP)
- Ronald Cintra Shellard (CBPF)”