Loja em aeroporto vende peças de cerâmica de negros escravizados e gera revolta nas redes sociais

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Escravos de cerâmica eram vendidos como ‘obra de arte’ em loja de aeroporto (Reprodução/@paulao_rj/Instagram)

Peças de cerâmica de negros escravizados à venda em uma loja de itens artesanais de um aeroporto em Salvador (BA) causou revolta, ontem (7), nas redes sociais. Um historiador que passou pelo estabelecimento registrou os itens com a etiqueta escrito “escravos de cerâmica R$ 99,90 a unidade”. A galeria de arte disse que se trata da representação dos “Pretos-Velhos”, entidades da umbanda.

As imagens dispostas na prateleira eram de pessoas negras sentadas, acorrentadas pelos pulsos e fumando um cachimbo. As peças possuem uma versão de um homem e outra de uma mulher. O historiador Paulo Cruz tirou foto das peças enquanto passava pela loja, chamada Hangar das Artes.

“Último dia de viagem. Cidade mais preta das Américas. No aeroporto internacional de Salvador, a loja @hangardasartes exibe em sua prateleira figuras de escravos à venda. Acorrentados. No porto de entrada e saída da cidade, repito, mais preta da América”, escreveu Paulo ao compartilhar a foto.

‘Genocídio e dor? R$ 99,90’

O historiador continuou as críticas: “O preço da nossa história, genocídio e dor? R$ 99,90. Vamos lá perguntar se eles são racistas?”. Por fim, ele pediu para que seus seguidores compartilhassem a postagem e “enchessem o saco” da loja até que ela pedisse “desculpas por esse crime”. Confira:

A postagem ganhou ainda mais repercussão quando o ativista Antonio Isuperio a compartilhou em seu Instagram, criticando a venda dos itens. “Capitalismo brasileiro feat. @hangardasartes do @salvadorbahiaairport”, nomeou Antonio.

‘Negros em processo de conquista da humanidade’

Em seguida, ele usou o que chamou de “recurso da inversão” para analisar o caso. “Você imagina que poderia ter um boneco de crianças judias em ‘forninhos’ para serem vendidas como adereços? Então, isso não acontece porque o repúdio à violência do Nazismo já esta em domínio público”.

“Enquanto nós, negros, ainda estamos em processo de conquista à nossa humanidade. Quem será que compra um boneco de pessoas escravizadas? A quem isso serve? Encenação gratuita é a objetificação de uma história, é a transformação dela em produto. Qual e a cara dos donos desta loja? Brasil, 2022”, finalizou.

Loja diz que peças são Pretos-Velhos

Ainda ontem, a loja publicou uma nota de retratação, explicando que as peças do estabelecimento são de artistas regionais, e que elas são voltadas para a exaltação da cultura baiana, brasileira e africana. A Hangar das Artes acrescentou que tem “orgulho de demarcar que somos, provavelmente, a cidade mais negra fora de África”.

“As imagens que estão circulando, de algumas de nossas esculturas, tratam-se da imagem do Preto(a) Velho(a) – espíritos que se apresentam sob o arquétipo de velhos africanos que viveram nas senzalas, majoritariamente como escravizadas, entidades essas que trabalham com a caridade e cuidam de todas as pessoas que os procuram”.

A galeria de arte justificou que esse é o motivo de as peças possuírem correntes, “na tentativa (errônea) de retratar a história dessa entidade de maneira literal. Erramos na forma em que as peças foram expostas e em descrevê-los apenas como escravos, apagando, de certa forma, a história que carrega”.

Estabelecimento pede desculpas

Por fim, a loja pediu as “mais sinceras desculpas a todos que se sentiram feridos e menosprezados”, e disse que não possuía intenção de destituir a imagem dos Pretos-Velhos. “Nossas correntes foram quebradas! E não queremos de maneira alguma trazer de volta memórias desse passado tenebroso e vergonhoso”.

Ainda, o estabelecimento informou que retirou todas as peças de escravos de cerâmica de circulação, “afim de minimamente nos retratar diante do ocorrido”. “Reconhecemos a nossa falha e não tornaremos a repeti-la, não só pela repercussão que houve e sim por não condizer com a nossa verdade”, finalizaram.

Historiador aponta incoerência na representação das entidades

A nota de retratação da Hangar das Artes causou ainda mais indignação em Paulo Cruz. Ele fez uma outra postagem contando que, em 20 anos frequentando centros umbandas e de candomblé, nunca viu Pretos e Pretas-Velhas representados com correntes ou algemas.

O historiador explicou que quando essas entidades voltam à terra, “esses espíritos gostam de ter contato com aquilo que lhes dava prazer enquanto encarnados, normalmente o marafo (qualquer bebida alcóolica mas, muito frequentemente, vinho com café) e o pito (cachimbo, charuto ou cigarrilha de palha)”.

“Não me parece plausível, portanto, dentro da crença das religiões afrodiaspóricas, pressupor que pretos e pretas velhas carreguem ou busquem ter consigo as correntes que tanto lhes causaram dor e opressão”, apontou Paulo.

Retratação ‘desrespeitosa’

Segundo ele, a retratação da loja é “pouco convincente, desrespeitosa e nitidamente uma tentativa de exercitar a não-culpabilidade por desconhecimento. Um pedido honesto de desculpas requer a admissão de seu erro, o compromisso com a melhora e a prestação de contas a seu público diante da repercussão causada. Ainda seguimos esperando”.

Na postagem, Paulo Cruz compartilhou a foto de um banner exposto em Ouro Preto, que precifica os escravos vendidos no sistema escravocrata brasileiro, ocorrida entre os séculos XVI e XIX. De acordo com a placa, “um negro ‘bem feito, valente e ladino'” custava 1 quilo de ouro.

Paulo usou o banner “para lembrar a todos que talvez ainda não consigam alcançar o porquê de tanta indignação que as imagens de uma pessoa preta acorrentada à venda no saguão de um aeroporto causa a todos os pretos (e deveria causar a todos os não-pretos) que as vêem”.

“Em Salvador, no ano de 2022, reproduz-se o que essa banner relatava acontecer no século XVIII. Pretos são vendidos. ‘Escravos, R$ 99,90′”. Veja a postagem do historiador:

O que diz a administração do terminal?

Em nota ao G1, a empresa que administra o terminal aéreo onde a loja é localizada, a Vinci Airports informou que recomendou a retirada das peças do estoque, depois de ficar sabendo da venda dos produtos “que remetem à desonrosa atividade da escravidão no Brasil”.

A Vinci Airports pontuou que não faz a curadoria dos produtos vendidos por cada subconcessionário. Entretanto, decidiu se posicionar nesse caso por uma decisão administrativa, que considerou ser fundamental a atitude.

Por fim, a empresa ressaltou que se empenha em construir uma comunidade antirracista, e reafirmou seu compromisso com a diversidade e a valorização da cultura afro.

Edição: Vitor Fernandes
Andreza Miranda[email protected]

Graduada em Jornalismo pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e repórter do BHAZ desde 2020. Participou de duas reportagens premiadas pela CDL/BH (2021 e 2022); de reportagem do projeto MonitorA, vencedor do Prêmio Cláudio Weber Abramo (2021); e de duas reportagens premiadas pelo Sebrae Minas (2021 e 2023).

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