“Clara
Abre o pano do passado
Tira a preta do cerrado
Pôe rei congo no Gongá
Anda, canta um samba verdadeiro
Faz o que mandou o mineiro
Oh! Mineira”
Em 1975, o já consagrado sambista João Nogueira (1941-2000) gravava os versos acima no álbum Vem que tem. A faixa Mineira, composta por Nogueira em parceria com Paulo César Pinheiro, fazia referência a dois nativos de Minas Gerais: Ary Barroso, autor de Aquarela do Brasil e mineiro de Ubá, e Clara Nunes, nascida no antigo distrito de Cedro (atual Caetanópolis) da cidade de Paraopeba.
Os primeiros versos de Mineira, aliás, remetem ao maior sucesso de Ary. O samba Aquarela do Brasil, composto em 1939 e de forte teor nacionalista, exortava o ouvinte a valorizar a cultura popular e as tradições brasileiras:
Ah! Abre a cortina do passado
Tira a mãe preta do cerrado
Bota o rei congo no congado
Para Nogueira e Paulo César Pinheiro (á época, marido de Clara), caberia à cantora realizar o destino manifesto na canção de Ary: cantar um Brasil ainda escondido pelas cortinas do passado, colocar a mãe preta no lugar de destaque que ela merece e devolver a realeza aos Reis Congos, uma referência à tradição afro-brasileira do congado.
Clara Nunes, assim como exorta a música que lhe faz homenagem, parece ter realmente realizado o que prescreveu o mineiro Ary Barroso: cantou, em plena ditadura militar, a religiosidade de matriz-africana, escondida por trás da cortina da perseguição e do preconceito, a cultura negra e ajudou a colocar o samba nas paradas de sucesso.
Cantando os orixás, retirou as mães pretas do lugar idealizado de “amas de leite”, cantando a beleza do cotidiano e a ancestralidade das mulheres negras em Coisa da Antiga. Cantora popular por excelência, Clara Nunes vendeu, ao todo 4,4 milhões discos durante a carreira.
De orfã e tecelã a cantora profissional: os primeiros anos de Clara Nunes em Minas Gerais
Mas a espetacular trajetória de Clara começou bem longe dos holofotes, em uma vila operária no interior de Minas Gerais.
Clara Francisca Gonçalves Pinheiro (nome de batismo de Clara Nunes) nasceu em 12 de agosto de 1942. Era a mais jovem dos sete filhos do casal Manuel Pereira de Araújo e Amélia Gonçalves Nunes.
A cantora veio ao mundo na atual cidade de Caetanópolis (MG), que à época recebia o nome de Cedro e era distrito da cidade de Paraopeba. O antigo povoado teve sua realidade completamente transformada por volta de 1870 com a inauguração, ali, da primeira fábrica de tecidos de Minas Gerais, a Cedro & Cachoeira.
Marceneiro na fábrica de tecidos, o pai de Clara era conhecido como “Mané Serrador”. Manuel também era violeiro e participante das festas de Folia de Reis. Ele faleceu vítima de atropelamento em 1944 e sua esposa acabou sucumbindo a um câncer apenas quatro anos depois.
Assim, aos seis anos, Clara já era órfã de pai e mãe. Foi criada por sua irmã Maria, apelidada de Dindinha, e por seu irmão José, conhecido como Zé Chilau. Nessa época, Clara participava de aulas de catecismo na matriz da Cruzada Eucarística, e cantava ladainhas em latim no coro da igreja.
A menina cresceu embalada pelas canções de Dalva de Oliveira, Elizeth Cardoso, Ângela Maria e Carmen Costa. Era o tempo dos boleros e do samba-canção e a jovem Clara Nunes bebeu avidamente da água dessas fontes antes de mergulhar no samba.
O primeiro sucesso
Em 1952, a fábrica de tecidos, em torno da qual orbitava a vida social e cultural de Cedro, promoveu um concurso de música dando a Clara, então com dez anos de idade, seu primeiro prêmio musical. Na ocasião ela interpretou uma guarânia paraguaia lançada naquele mesmo ano. Recuerdos de Ypacaraí, de Demetrio Ortiz e Zulema Mirkin, seria mais tarde seria relembrada na voz de Caetano Veloso. O prêmio foi um vestido azul.
Já em 1956, Clara começou a trabalhar como tecelã na mesma fábrica em que atuou como marceneiro o seu pai. Mas ela não trabalharia lá por muito tempo.
No ano seguinte, a futura cantora sofreria um grave revés familiar e pessoal. Zé Chilau, o irmão que havia ajudado a criá-la, assassinou o primeiro namorado de Clara. O rapaz, que não havia aceitado o término do namoro, estava a difamar a jovem Clara na cidade, o que despertou a ira de Zé.
Após o crime, Clara mudou-se para Belo Horizonte, indo morar com sua irmã Vicentina e seu irmão Joaquim, que viviam na casa de uma tia paterna no bairro Renascença. Na capital mineira, Clara permaneceu seguindo o ofício de tecelã, desta vez na Companhia Renascença Industrial.
Assim como em Cedro, a vida social e cultural no bairro Renascença giravam em torno das atividades da tecelagem. A própria Vila Renascença nascera, em 1937, para abrigar os mais de mil operários da fábrica. A companhia mantinha um campo (e um time) de futebol e um clube, onde ocorriam os bailes e demais eventos sociais do bairro.
Voz de Ouro
À noite, a tecelã estudava o curso normal de formação de professoras e, aos finais de semana, participava dos ensaios do coral da igreja. Naquela época, conheceu o violonista Jadir Ambrósio, conhecido por ter composto o hino do Cruzeiro. Admirado com a voz da adolescente, Jadir levou Clara a vários programas de rádio, como “Degraus da Fama”, no qual ela se apresentou com seu nome de batismo, Clara Francisca.
Em 1960, já com o nome de Clara Nunes e ainda trabalhando como tecelã, ela venceu a etapa mineira do concurso “A Voz de Ouro ABC”, com a música “Serenata do Adeus”, de Vinícius de Morais. Ela ficou em terceiro lugar na etapa nacional concurso, que tinha imensa repercussão nacional e ganhou como prêmio da gravadora Odeon a gravação de um compacto e, posteriormente, do primeiro LP.
Também no início dos anos 60, Clara Nunes conheceu e começou a namorar com Aurino Araújo irmão do cantor da Jovem Guarda Eduardo Araújo, que a apresentou a diversos artistas. O produtor musical do início de sua carreira era Cid Carvalho, que foi o responsável pela adoção do nome artístico de Clara Nunes para a cantora.
Parceria com Bituca
Por três anos seguidos, Clara foi considerada a melhor cantora de Minas. Além disso, passou a fazer apresentações em clubes e boates da capital mineira, onde trabalhou com o baixista Bituca, que mais tarde se tornaria célebre com o nome de Milton Nascimento.
Naquela época, fez sua primeira apresentação na televisão, no programa de Hebe Camargo em Belo Horizonte. Em 1963, ganhou um programa exclusivo na TV Itacolomi, chamado “Clara Nunes Apresenta” e exibido por um ano e meio.
Foi nesse período, também, que Clara acabou se afastando do catolicismo e começou a frequentar centros espíritas de mesa branca, convertendo-se ao kardecismo.
Clara viveu em Belo Horizonte até 1965, quando Aurino a orientou, a se mudar para o Rio em busca de maior sucesso como cantora. Ela alugou um quarto na rua Barata Ribeiro em Copacabana, no mesmo apartamento em que viviam o produtor e compositor Carlos Imperial e o cunhado de Clara, Eduardo Araújo.
Primeiros anos no Rio de Janeiro
O primeiro LP de Clara Nunes, prêmio pela terceira colocação no concurso “A Voz de Ouro ABC” veio a lume em 1966, um ano depois da mudança de Clara Nunes para o Rio de Janeiro. Em “A voz adorável de Clara Nunes” ainda não é, no entanto, possível ouvir a futura sambista. O repertório era majoritariamente formado por boleros e canções românticas, como a faixa “Convite”, de Anizio Pessanha e Marco Polo, que guardava maior relação com as cantoras do rádio da década anterior, como Dolores Duran e Ângela Maria.
O primeiro LP de Clara, porém, não recebeu grande destaque e nem foi um sucesso de vendas. A intenção da Odeon, de lançar Clara Nunes como cantora romântica, acabou esbarrando nas profundas alterações sofridas pela indústria musical brasileira nos anos anteriores. Naqueles tempos, o rock estava encontrando seus caminhos no Brasil e a bossa nova já era um fenômeno de repercussão internacional.
O repertório romântico, com seus boleros e sambas-canções, ainda fazia considerável sucesso com nomes como Altemar Dutra, Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto, mas dava sinais de esgotamento.
Clara Nunes, no entanto, seguia tentando se encontrar. Flertou com a Jovem Guarda e chegou a participar de três filmes interpretando canções do movimento liderado pro Roberto Carlos (“Na onda do iê-iê-iê”, “Carnaval, barra limpa” e “Jovens pra frente”). Em seguida, passaria a defender músicas em festivais universitários ao lado da turma do MAU (Movimento Artístico Universitário), que tinha como destaques Aldir Blanc, César Costa Filho, Ivan Lins, Gonzaguinha, entre outros. Nenhuma das tentativas alavancou a carreira da artista.
Clara e os terreiros
Na época, além de emissoras de rádio e televisão, ela também se apresentava em clubes e casas noturnas do subúrbio carioca, onde acabou conhecendo terreiros de religião de matriz africana, optando por deixar o kardecismo e converter-se ao candomblé.
Em 1968, Aurino Araújo, namorado de Clara, aproveitou-se de seu proximidade com Carlos Imperial, que, então, era diretor artístico da gravadora EMI Odeon, para tentar fortalecer a carreira da cantora. Imperial deu a Clara, após longa resistência pelo fato de não gostar do estilo romântico de Clara Nunes, a música (composta por ele em parceria com o sambista veterano Ataulfo Alves) com que ela despertaria, pela primeira vez, a atenção da mídia: “Você passa, eu acho graça”.
“Você Passa, eu acho graça” era também o nome do segundo LP de Clara, de 1968. Foi outro fracasso comercial. O álbum vendeu pouco menos de 7 mil cópias apenas, mas foi o primeiro encontro musical da voz de Clara com o estilo que iria marcar a sua carreira anos depois: o samba.
Clara Nunes abraça o samba
O samba, como expressão musical tipicamente brasileira, tem data de nascimento incerta, mas existe um certo consenso quanto ao local.
Na segunda metade do século 19, vastos contingentes populacionais negros deixaram a Bahia em direção ao Rio de Janeiro, no fenômeno conhecido como “diáspora baiana”. A escravidão perdia força com uma série de legislações restritivas à prática e viria a ser definitivamente abolida em 1888. Os negros libertos, porém, não recebiam qualquer tipo de auxílio do estado brasileiro, sendo lançados à própria sorte.
O Rio de Janeiro, capital do país, era visto por aquelas pessoas como um local que proporcionaria mais oportunidades de trabalho. Junto com esses migrantes, vieram mulheres fortes, com grande conhecimento religioso e tradicional de suas origens africanas e que se tornariam, especialmente no espaço em torno da Praça 11, no centro do Rio de Janeiro, verdadeiras lideranças locais.
Elas seriam conhecidas como as “tias baianas”. Em seus quintais, batuques, rezas e reuniões da comunidade eram frequentes.
A mais famosa delas, sem dúvida, foi Tia Ciata. Quituteira, costureira e líder comunitária, era também “IYá Kekerê” (principal auxiliar do pai-de-santo) num dos mais prestigiados terreiros do Rio de Janeiro, o terreiro de João Alabá.
Influências
Foi na casa de Tia Ciata que foi composto o primeiro samba gravado. Pelo telefone, música registrada por Donga em 1916 e gravada em 1917, foi uma criação coletiva, com participação de João da Baiana, Pixinguinha, Caninha, Hilário Jovino Ferreira e Sinhô, entre outros.
Desde então, o samba passou por diversas alterações e veio surgir vários grandes nomes que foram deixando suas marcas na história, como Cartola, Noel Rosa, Wilson Batista, os mineiros Ataulfo Alves e Geraldo Pereira, entre vários outros.
A partir segunda metade da década de 40, o estilo sofreu diversas influências estrangeiras por parte de estilos como o bolero, o jazz e a música francesa. Era o samba-canção, também chamado de sambolero e sambalada, que normalmente tinha uma pegada de fossa, mais melancólica e arranjos de orquestra.
Se o samba-canção teve expoentes que oscilavam entre o estilo e o samba tradicional, como Jamelão, Herivelto Martins e Lupicínio Rodrigues, ele foi, pouco a pouco, embranquecendo e se afastando cada vez mais das rodas que ocorriam na casa de Tia Ciata.
Nomes como Dick Farney, Maysa, Dolores Duran e Nelson Gonçalves se tornaram os ícones do estilo nas gravadoras e nas rádios, enquanto o samba tradicional estava cada vez mais restrito ao carnaval e aos quintais dos morros do Rio de Janeiro.
Por outro lado, na zona sul do Rio dos anos 50, o samba havia se mesclado recentemente com outros estilos, principalmente o cool jazz, para dar origem à bossa nova.
Os compositores de Clara
Nos anos 60, porém, mais ou menos ao mesmo tempo em que Clara Nunes se mudava para o Rio de Janeiro, esboçava-se um movimento de retorno às tradições. Um dos centros desse movimento chamado de “samba de resistência”, foi o bar Zicartola, aberto pelo casal Dona Zica e Cartola. onde sambistas das antigas, como Zé Ketti, Nelson Cavaquinho, Elton Medeiros e Ciro Monteiro se reuniam para trocar composições e tocar.
A repercussão cultural do bar, que durou apenas de 1962 a 1963, foi tão grande que acabou atraindo pessoas de outras regiões da cidade que acabaram se maravilhando com a música do local. Por exemplo, uma jovem cantora, já famosa e de família rica, Nara Leão, chegou a se apresentar no local e gravou sambas daqueles compositores. Um outro rapaz, um jovem bancário de uma família de músicos, também foi revelado por lá: Paulinho da Viola.
Entre esses jovens estava também um radialista, extremamente interessado em cultura popular e que se tornou um dos maiores divulgadores dos compositores de samba naquele período: Adelzon Alves.
Conhecido e respeitado por gerações de músicos de todos os cantos do Brasil, o radialista e produtor Adelzon Alves fez história no rádio quando estreou seu programa “Amigo da madrugada”, na Rádio Globo, em 1966. Ele iniciou movimento de valorização dos compositores do morro, de sambistas como Cartola, Candeia, Nelson Cavaquinho, Zagaia, Djalma Sabiá, Geraldo Babão e Silas de Oliveira.
Vários desses sambistas seriam gravados, posteriormente, por Clara Nunes.
O primeiro disco
Entre os feitos de Adelzon, que lançou as carreiras de João Nogueira, Roberto Ribeiro, Dona Ivone Lara e contribuiu decisivamente para as carreiras de Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Jovelina Pérola Negra e Zeca Pagodinho, está o de produzir o primeiro LP de Clara Nunes focado em samba.
Adelzon foi o produtor do quarto LP da cantora, “Clara Nunes”, onde ela interpretou “Ê Baiana” (de Fabrício da Silva, Baianinho, Ênio Santos Ribeiro e Miguel Pancrácio), música que obteve considerável sucesso no carnaval de 1971, e “Ilu Ayê”, samba-enredo da Portela (de autoria de Norival Reis e Silvestre Davi da Silva).
Na capa do álbum, a cantora mineira fez um permanente nos cabelos pintados de vermelho e passou, a partir de então, a se vestir com turbante e vestes brancas, roupas que remetem-se às religiões afro-brasileiras.
Clara passaria a participar, então, de um amplo movimento que, com suas raízes fincadas no já extinto Zicartola e no rico intercâmbio produzido por lá, pretendia valorizar a música brasileira e a nossa cultura por meio do samba, ao lado de nomes como Roberto Ribeiro, João Nogueira, Beth Carvalho, Martinho da Vila e Paulinho da Viola.
Essa geração de músicos promovia o resgate das tradições do samba, trazendo para as grandes gravadoras elementos como a roda de samba e o partido alto, que antes andavam sumidos no meio das harmonias sofisticadas da bossa nova e das orquestrações grandiloquentes do samba canção.
A religiosidade
A relação pessoal de Clara Nunes com o samba, no entanto, iniciou-se antes do casamento musical da cantora com o estilo. Frequentadora de terreiros no Rio, Clara era, inicialmente, admiradora da Mangueira, mas acabou escolhendo a Portela como a escola de seu coração.
Neste mesmo ano da produção do disco, em 1971, Clara deixou o candomblé e se ligou definitivamente a umbanda, frequentando um terreiro do bairro de Madureira, no Morro da Serrinha. Esta foi a religião a qual dedicou-se publicamente até o fim de sua vida. A essa altura, ela havia rompido seu noivado com Aurino Araújo e se envolvera romanticamente com Adelzon.
Ao lado de Adelzon Alves, Clara estouraria como intérprete e alcançaria repercussão internacional, com passagens por Cannes e Alemanha. Além do LP de 1971, Clara fez ao lado dele mais dois álbuns que tinham como título o nome da cantora.
Em 1973, foi convidada para participar do show “Poeta, moça e violão” ao lado de Vinicius de Moraes e Toquinho. Logo depois, sob a direção de Bibi Ferreira, Clara Nunes estrelaria o musical “Brasileiro, profissão esperança”, com o ator Paulo Gracindo.
Foi nesse período que conheceu o homem que viria a ser seu último amor: Paulo César Pinheiro, que legou alguns dos maiores sucessos de Clara.
Clara e Paulo
A paixão surgida entre Clara e Paulo foi fulminante e a cantora rompeu com Adelzon Alves em meio à produção do último disco que produziram juntos. Um ano após se conhecerem, estavam casados.
Paulo é, até hoje, um dos mais prolíficos compositores brasileiros e, aos 18 anos de idade, já havia emplacado um sucesso na voz de Elis Regina: o samba Lapinha, parceria com Baden Powell defendido por Elis no Festival da Canção da TV Record, em 1968. Quando conheceu Clara Nunes, ele já era um compositor consagrado e trabalhava na EMI, mesma gravadora da mineira.
Ao lado de Paulo César Pinheiro, Clara iniciaria a terceira fase de sua carreira, firmando-se como intérprete da MPB já, então, embebida de samba. Com o LP “Claridade” (1975) chegou novamente às paradas de sucesso embalada por “O mar serenou”, do portelense Candeia, e “A deusa dos orixás”, de Romildo e Toninho Nascimento.
Na Portela, tornou-se madrinha da Velha Guarda. Foi, por três vezes, intérprete da escola na avenida e desfilou na sua escola do coração até fevereiro de 1983, em seu último carnaval. E, hoje dá nome, à rua onde está localizada a quadra da escola de samba.
E foi por causa de seu amor à Portela que ela protagonizou com o mangueirense Paulo César Pinheiro, uma história inusitada.
“Um dia Clara me fez uma encomenda, queria gravar um samba que falasse da Portela, sua escola do coração, argumentei que depois, do samba do Paulinho da Viola, ‘Foi um rio que passou em Minha Vida’, era difícil tentar se aventurar por este assunto. Situação difícil de resolver”, conta Paulo Sergio em depoimento ao blog Cidadão Cultura.
Madrinha em Madureira
“Porém, certo dia fui tomar um ar. Perdido em devaneios e imerso em meus pensamentos me coloquei a observar o cantinho de Clara Nunes. Era uma mesa de fazenda, toalha de renda branca, grande oratório aberto em torno dele imagens de orixás espalhados e, dentro, os santos católicos. Estava ali na minha cara, o que buscava tanto, era só misturar o sagrado e o profano como faz o povo intuitivamente em suas manifestações folclóricas. Em suma: Uma procissão do samba num canto de fé.”
Surgia, então, Portela na Avenida, composição que Clara assina junto com Paulo Cesar e Mauro Duarte.
Paulo tornou-se um dos compositores mais presentes nos álbuns de Clara Nunes, brindando o público com sucessos como Canto das três raças, Menino Deus e Serrinha em parceria com Mauro Duarte e Homenagem à velha guarda, em parceria com Sivuca.
Também se destacam a parceria de Paulo com João Nogueira, com o sucesso Guerreira, resposta, na voz de Clara, à música Mineira, também dos dois.
São poucos os exemplos na MPB de músicas que homenageiam diretamente a intérprete que vai interpretá-las. Guerreira é uma música sobre Clara Nunes, escrita para a sua voz e interpretada por ela com perfeição, tamanho o prestígio de que gozava a cantora.
A mesma dupla de compositores escreveria, anos mais tarde, uma terceira música para a cantora. Essa porém, não seria gravada pela cantora.
‘Um ser de luz’: a morte de Clara Nunes
Clara Nunes entrou na década de 80 gozando de grande prestígio nacional e internacional. Em 1980, ela gravou o álbum “Brasil Mestiço”, com destaque para a faixa Morena de angola (composta por Chico Buarque). Ainda naquele ano, a cantora participou dos LPs “Cabelo de Milho” (de Sivuca) e “Fala Meu Povo” (de Roberto Ribeiro). Depois viajou para Angola representando o Brasil ao lado de Djavan, Dorival Caymmi e Chico Buarque, entre outros.
Em 1981 estreou o LP “Clara” e estreou o show “Clara Mestiça” (dirigido por Bibi Ferreira).
Em 1982, a Odeon lançaria “Nação”, o último álbum de estúdio da cantora. O LP teve como destaques a faixa-título (de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio) e Ijexá (de Edil Pacheco). Ainda naquele ano, apresentou-se na Alemanha ao lado de Sivuca e Elba Ramalho e participou do LP “Kasshoku”, lançado no Japão pela gravadora Toshiba/EM.
Em 1983, Clara Nunes cantou no desfile da Portela. Já tinha, a essa altura, a intenção de fazer uma cirurgia para a retirada de varizes nas pernas, mas a adiou para depois do Carnaval.
Assim, em 5 de março, Clara dispensou a carona do marido e foi até a Clínica São Vicente, na Gávea, no Rio de Janeiro. Lá, ouviu a equipe médica tentar convencê-la a desistir da anestesia geral, mas ficou contrariada e disse que só faria se fosse daquela forma.
A cirurgia estava acontecendo normalmente, quando houve uma queda de pressão arterial e a cantora teve uma parada cardíaca. Os médicos tentaram ressuscitá-la, mas ela entrou em coma e foi transferida para o centro de tratamento intensivo da clínica. Lá ficou até sua morte, quase um mês depois.
Homenagem em azul e branco
Enquanto estava em coma, várias teorias surgiram para justificar o que havia acontecido com a cantora. Muitos afirmavam que ela havia tentado fazer um aborto, outros que estava tentando fazer inseminação artificial, tentado suicídio e até mesmo sido espancada pelo marido. Ainda havia aqueles que acreditavam que o choque anafilático foi causado pelo problema da cantora com álcool e drogas.
Ela faleceu na madrugada de 2 de abril, aos 40 anos. O corpo da cantora, como não poderia deixar de ser, foi velado na quadra da Portela, onde foi visitado por mais de 50 mil pessoas.
A causa da morte insuficiência cardíaca causada por uma anafilaxia ao halotano, um agente anestésico utilizado na manutenção de anestesias gerais.
Naquele mesmo ano, João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro escreveram a última homenagem musical que fariam à cantora: o samba Um ser de Luz.
Um dia
Um ser de luz nasceu
Numa cidade do interior
E o menino Deus lhe abençoou
De manto branco ao se batizar
Se transformou num sabiá
Dona dos versos de um trovador
E a rainha do seu lugar
Sua voz então
Ao se espalhar
Corria chão
Cruzava o mar
Levada pelo ar
Onde chegava
Espantava a dor
Com a força do seu cantar