Cruzeiro promove Assembleia importante para o clube-empresa; ‘Transparência zero no processo’, alerta pesquisador

cruzeiro saf
Presidente Sérgio Santos Rodrigues mostra os atos constitutivos da SAF, lavrados em cartório e apresentados para registro na JUCEMG (Cruzeiro/Divulgação + Rodolfo Rodrigues/Cruzeiro)

Mais uma etapa na transformação do Cruzeiro em clube-empresa (Sociedade Anônima do Futebol, conhecida como SAF) acontece na noite de hoje (17). O Clube Cruzeiro Barro Preto recebe a Assembleia Geral para alteração do Estatuto, em relação à Sociedade Empresária de Prática Desportiva Profissional. Diante da novidade e importância do assunto, dúvidas são naturais, especialmente vindas de torcedores, representantes do principal patrimônio de um clube.

Para entender o que está em jogo na SAF Cruzeiro, o BHAZ conversou com Irlan Simões, jornalista, pesquisador de futebol, doutorando ligado ao Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME/UERJ) e autor do livro “Clube Empresa: Abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol”. Ele ressalta que a SAF pode ser um meio para solucionar problemas no Cruzeiro, mas não deixa de questionar alguns detalhes e possíveis riscos do processo.

A Assembleia

Segundo nota do clube, “a Assembleia tem como pauta a alteração do Estatuto Social, considerando a necessidade de se adequar a participação societária do Cruzeiro Esporte Clube com a realidade do mercado, bem como a reserva de percentual de pelo menos 10% (dez por cento) do capital social votante ou do capital social total, a fim de garantir o poder dever do Clube de vetar questões sensíveis da Sociedade Anônima de Futebol Cruzeiro”.

Caso aprovada, essa reserva dos 10% não necessariamente provoca a venda dos outros 90% para investidores, mas é uma possibilidade. “O percentual dependerá da avaliação, oportunidade e negociação, conforme o que for mais vantajoso para o Cruzeiro, e será definido posteriormente”.

O clube-empresa

Antes de explicar o caso do Cruzeiro, vale ressaltar algumas informações importantes sobre o clube-empresa, que consiste na aprovação da venda de uma associação (o clube) para um acionista, comprador. Segundo o pesquisador Irlan Simões, a modalidade nem sempre é garantia de otimismo e o perfil de um comprador pode significar algo diferente do esperado por torcedores.

“Em tese, no formato empresarial, os donos teriam mais zelo, tentariam tornar a atividade mais eficiente e não fariam gastanças desenfreadas. Mas a história do futebol mostra que isso é um mito. O comprador tem mais interesse em utilizar a instituição que já nasceu bem antes dele”, ressalta.

Irlan também destaca clubes que já foram abandonados por proprietários. “Na Itália, há mais de 50 clubes falidos. Na Espanha, 40 clubes já entraram em concurso de credores, o que alguns brasileiros também querem fazer. As dívidas dos espanhóis foram zeradas no início, mas após 30 anos, isso aconteceu”, explica.

“Na Inglaterra, os clubes estão sendo passados de um dono ao outro por pouco dinheiro, dívidas estão sendo vendidas. Os clubes precisam estar preparados para todo tipo de problema. Muita gente não sabe que o Vitória e o Bahia foram SA há alguns anos e deram errado”, avisa.

‘Há uma manipulação política’

Nos dias anteriores à Assembleia no Cruzeiro, criou-se um movimento nas redes sociais para compartilhar a ideia de “independência” do clube, que seria garantida pela reserva dos 10% mínimos. O pesquisador enxerga essa discussão com cautela. “Há uma manipulação política no discurso do que é a SAF Cruzeiro. É um clube imenso, com um patrimônio valioso, uma marca internacionalizada, mas que precisa arrumar a casa”.

Para Irlan, a possível venda de 90% do patrimônio de uma só vez pode não ser tão benéfica neste momento. “Hoje, com 3 anos seguidos na Série B e poder de barganha quase nulo, se o Cruzeiro vender 90% do capital, isso é praticamente tudo, já que 10% significa marca, identidade. Existem muitas possibilidades e para mim, a pior delas é vender 90%, porque hoje o clube vale pouco. Muito me preocupa essa sede por venda, e o discurso me parece menos do Cruzeiro em si e mais de quem quer vender o Cruzeiro”, alerta o pesquisador.

Outro modelo

O pesquisador sugere um possível modelo mais positivo no momento. “O mais importante seria vender uma parte do capital controlado para sanar as contas e dívidas (especialmente de curto prazo), montar um bom time, subir para a Série A”, avalia.

“Depois, poderia vender mais 20% para um possível comprador, antecipar o pagamento das dívidas e tentar ir para a Libertadores. Chegando ao torneio, poderia negociar mais uma porcentagem ou tentar recomprar o vendido antes”, diz.

“Quem gerir a venda, vai ganhar muito dinheiro, e dele, caso for 20% ou 40%, ganharia muito menos do que vendendo 90%. Então, para o corretor, o mais interessante é vender tudo logo e a gente não sabe quanto é esse valor. O torcedor está sendo deixado levar por essa pressão”, questiona Irlan.

‘Faltou profissionalismo’

Nesta semana, uma declaração de Pedro Mesquita, sócio da XP Investimentos, que comanda a transformação do Cruzeiro em SAF, repercutiu bastante nas redes sociais (veja abaixo). Segundo ele, caso o percentual de 10% para o clube não seja aprovado, a empresa não irá continuar no processo. Irlan não concordou com a afirmação do empresário.

“A empresa deveria respeitar os processos, os riscos do clube. O Cruzeiro tem a legitimidade de decidir o que irá acontecer. Neste caso, antes de ser torcedor, o Pedro é um prestador de serviço do Cruzeiro. Se o percentual vendido vai ser 49%, 30%, 75,2%, enfim, se existe alguma regra, é o clube que decide. Faltou profissionalismo. É temerário que outros clubes fechem acordo e passem pelo mesmo problema no futuro”, criticou.

A XP pode participar da compra?

Irlan Simões também abordou outros elementos, como a possibilidade de a XP participar da compra. “Você contrata o profissional para fazer um estudo, saber quanto o clube vale, pesquisar investidores estrangeiros, e pode ser que o dinheiro venha da própria XP. Ninguém está colocando isso. Vejo também outras figuras políticas que embarcaram na onda e sabem que vão aparecer, ganhar votos, prestígio com o assunto. Não pode ser assim, olha o tamanho do Cruzeiro. Não é apenas a história, tem o patrimônio”.

Em contrapartida, Pedro Mesquita afirmou em entrevista recente ao ge que a empresa não tem interesse em participar do negócio da compra de times: “Não, a XP não investe. É assessora financeira dos clubes na busca por investidores”.

O que diz a XP?

Na conversa com o portal, o “head” do banco de investimentos da XP disse que a empresa procura o melhor para cada clube. “Claro que, para o clube, o quanto mais agressivo for esse investidor, melhor. Querer resultado rápido é melhor, mas também não pode fazer isso para não parar de pé como foi no passado”, disse Pedro Mesquita.

O sócio da XP também apresentou como a empresa presta serviço em processos desse tipo. “Toda transação que envolve uma empresa de grande porte é assessorada por um banco de investimentos. Então, nosso papel é prestar assessoria ao Botafogo e ao Cruzeiro na busca por um investidor. Junto com o clube, construir a tese, a documentação, o motivo de ser um bom investimento, contatar os investidores, negociar e ajudar a escolher o melhor investidor.”

‘Transparência zero’

Para Irlan Simões, o processo da SAF Cruzeiro deveria ser mais transparente. “No momento, a transparência no processo está zero porque fica só na promessa, diversas histórias novas sobre o perfil do possível investidor. Pessoas de dentro podem saber, mas o torcedor não sabe”, diz.

O pesquisador questionou aspectos que julga importantes, mas ainda sem esclarecimento. “Qual o montante? Como ele vai se alinhar à necessidade de centralizar as execuções na Justiça? Como vai garantir o repasse de 20% da receita líquida? Caso o acionista não responda às expectativas, quais condições de compra de ações o Cruzeiro terá? No Estatuto da Sociedade Anônima do Futebol, como o clube vai criar um mecanismo de controle ou blindagem sobre certos patrimônios, para que não seja alienado em um futuro próximo através de uma movimentação política?”.

Em entrevista ao ge publicada hoje (17), o presidente Sérgio Santos Rodrigues falou em sigilo nos acordos. “A gente tem que continuar trabalhando e mostrar ao mercado que o Cruzeiro é um ótimo produto. Muita gente pergunta, quanto vale? O que que vai passar? Como vai ser? Eu falo, gente, qualquer transação comercial, é o preço que o mercado fala”.

“Como a gente falou, a gente já havia assinado documentos de confidencialidade, termos de confidencialidade, para trocar documentos para os potenciais investidores entenderem mais a fundo”, argumentou.

‘Arapucas para o Cruzeiro’

Ainda segundo Sérgio Santos Rodrigues, os 90% seriam o teto máximo de venda. “A gente acabou optando por sugerir a alteração no estatuto, permitindo que se aliene mais de 49%, podendo chegar a 90%, o que não quer dizer que vai vender 90%. Pode vender 50, 60, 70. Vai depender do mercado, da proposta que vai ser feita”.

É o que lembra Irlan, que chama atenção para outra esfera do processo. “A história de ‘ou é 90% ou é nada’ é mentira. Existem muitas arapucas para o Cruzeiro, é quase um caminho sem volta. É preciso pensar no outro lado: além de trazer o dinheiro, o investidor será dono e fará o que ele quiser, e não o que o torcedor quiser”.

“A propriedade [SAF] é diferente da associação civil [modelo atual dos clubes brasileiros]. O dirigente vai embora e a associação segue, mas quando o proprietário cansa ou desiste, alguém precisa comprar, ele não vai devolver. Em caso de morte, passa ao filho e o clube vira objeto de herança”.

“Os discursos estão mal colocados, há irresponsabilidade. Infelizmente, há um apelo grande da exploração do desespero do torcedor, que é o mais lamentável de tudo. Precisamos ajudar a informar o torcedor. O esforço que eu faço é quase um ‘Davi contra Golias’, mas alguém tem que fazer isso, então me dispus”, salienta. 

Única solução?

Para Irlan, a SAF não representa a única forma de administrar clubes. Ele prefere apontar outras possibilidades que, segundo ele, nunca aconteceram no Brasil: “Reformar os clubes, democratizar, tornar mais profissionais, transparentes, criar estatutos com critérios mais claros de governança, controle interno e externo, reformar a lei, exigir responsabilidade fiscal dos dirigentes”.

‘É fácil brincar com o sonho do torcedor’

Para Irlan, ainda há uma fantasia em torno do assunto clube-empresa. “A ideia de um investidor no clube é muito sedutora. Todo torcedor tem direito de sonhar com craques, taças, goleadas, mas a tomada de decisões precisa ser mais séria que o sonho. É muito fácil brincar com o sonho do torcedor do Cruzeiro, ainda mais agora que o rival está ganhando com base em dinheiro de mecenas“. 

“Entendo o desespero e sabemos que a estrutura fechada do Cruzeiro gerou as dívidas, mas o problema é resultado de décadas de falta de legislação. Além disso, clubes-empresas fecham, não são um mar de rosas, muitos problemas podem vir. A solução não passa necessariamente por entregar tudo de uma vez. A SAF pode ser uma solução, mas não é a solução em si, e sim, um meio possível de transformar o clube em algo melhor no futuro”, finaliza o pesquisador Irlan Simões.

Edição: Roberth Costa
Beatriz Kalil Othero[email protected]

Jornalista formada pela UFMG, escreve para o BHAZ desde 2020, e atualmente, é redatora e fotógrafa do Portal. Participou de reportagens premiadas pela CDL/BH em 2021 e 2022, e pela Rede de Rádios Universitárias do Brasil em 2020.

SIGA O BHAZ NO INSTAGRAM!

O BHAZ está com uma conta nova no Instagram.

Vem seguir a gente e saber tudo o que rola em BH!