‘Foi uma história que acabou’: Sete anos depois, o depoimento de uma atingida pela Samarco

lama destruiu bento rodrigues
Sete anos depois, a lama da barragem do Fundão ainda faz vítimas (Antonio Cruz/ Agência Brasil)

Na tarde do dia 5 de novembro de 2015, um feroz tsunami de lama fez desaparecer, sem aviso prévio, o pacato distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, em Minas Gerais. Naquela ocasião, sessenta milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração, oriundos do rompimento da Barragem do Fundão, administrada pela Samarco S.A., soterraram mais de 300 anos de história, ceifaram 19 vidas humanas e fizeram desaparecer o modo de vida e a memória de cerca de 300 famílias.

Em Bento Rodrigues, apenas se iniciava a trajetória de destruição do mar de rejeitos, que viajaria por cerca de 600 quilômetros. O tsunami de lama invadiu o leito do Rio Gualaxo do Norte, próximo de Bento. Depois, pegou carona no leito do Rio Doce, deixando um rastro de destruição nas comunidades urbanas, rurais e ribeirinhas do entorno, além de provocar danos ambientais imensuráveis.

Sete anos depois, muitos dos atingidos de Bento Rodrigues e de outras localidades próximas, ainda esperam por justiça, enquanto lamentam terem sido abruptamente usurpados da vida que, até então, eles conheciam.

A equipe do BHAZ conversou com Janiele, uma das mulheres atingidas pelo rompimento da Barragem do Fundão em 2015.

Ela nos contou a sua história e a história de seus familiares, desde o rompimento da barragem até hoje.

Bicas e Ponte do Gama

Janiele Arantes Pereira tem hoje 29 anos. Ela cresceu na pequena comunidade de Bicas, que pertence ao distrito de Camargos, a cerca de 8 km de Bento Rodrigues. Embora pouco se tenha falado sobre isso na época, vários povoados próximos a Bento, além de diversas pequenas propriedades rurais nas margens do rio Gualaxo do Norte também pereceram com o rompimento da Barragem do Fundão.

Bicas, especificamente, era conhecida por sua cachoeira, onde foi construída, em 1942, a PCH (Pequena Central Hidrelétrica), que gerava energia para Mariana e alguns de seus distritos.

Streetview mostra parte da antiga Bento Rodrigues, a cerca de 8km de Bicas e Ponte do Gama
(Reprodução/StreetView)

Embora nascida e criada em Bicas, Janiele não vivia lá no momento em que o povoado foi soterrado. Sua mãe, Maria Julieta, vinha enfrentando problemas de saúde e Janiele se mudara com ela temporariamente para Mariana, onde ela teria melhores condições de se tratar.

O pai dela, Edson, no entanto, permaneceu em Bicas, cuidando do sítio da família. Em outra localidade próxima dali, que também viria a ser destruída pelos rejeitos, Ponte do Gama, viviam a avó de 93 anos, Dona Valdemira, e a tia de Janiele.

No dia 5 de novembro de 2015, o pai de Janiele, por coincidência, estava em Ponte do Gama, visitando um terreno da família.

O mar de rejeitos

No meio da tarde, segundo o relato de Janiele, sua tia e sua avó começaram a perceber algo estranho. Havia intensa movimentação de aviões e helicópteros pelo céu da pequena propriedade onde elas viviam. Nenhum aviso a respeito do que estava por vir chegou até as duas mulheres além deste pequeno indício.

De repente, no fim da tarde, elas ouviram um barulho muito forte. A tia de Janiele fugiu com a avó para o mato. As duas tinham dificuldades de locomoção. Edson, em outro ponto do vilarejo, também percebeu algo estranho, subiu em sua moto e acelerou para um lugar mais elevado.

Após a passagem do mar de rejeitos, o pai de Janiele foi tentar encontrar a sogra e a cunhada, sem saber se estavam vivas ou mortas.

“A minha tia e a minha avó foram dormir no mato e meu pai foi tentar abrir caminho para ver se elas estavam vivas ou não. A casa delas ficava um pouco distante. Ele foi e abriu caminho no meio do mato junto com outras pessoas lá, próximas”, contou Janiele.

Devastada pela lama, Bento Rodrigues ainda está em processo de reconstrução (Amanda Dias/BHAZ)

Por sorte, Edson trazia consigo uma lanterna, que havia carregado um dia antes por coincidência, pois a destruição havia trazido consigo um breu indevassável. Ao fim, ele se reencontrou com as duas mulheres e, no mato eles ficaram, com outros moradores, enquanto aguardavam o resgate.

Enquanto isso, em Mariana, a situação era de angústia. Janiele e sua mãe ficaram sabendo do rompimento, ainda no final da tarde, mas ficaram sem ter notícias dos parentes, que estavam no local da tragédia. Ponte do Gama e Bicas, mesmo em condições normais, não tinham sinal de celular e, para piorar a rede elétrica havia sido destruída. Até a noite do dia 5, elas ainda acalentavam a esperança de que, talvez, a enxurrada de rejeitos não tivesse passado por Bicas ou Ponte do Gama, mas, finalmente, lhes transmitiram a notícia de que a lama havia sim deixado por lá o seu rastro.

‘Aí é que começaram os problemas’

Os três parentes de Janiele passaram a noite ao relento, no meio da mata, inclusive Dona Valdemira, quase centenária. O resgate veio na tarde do dia 6 de novembro e todos foram levados para Mariana.

Aqui, a voz de Janiele fica embargada. Segundo ela, foi então que começaram os piores problemas que a família viria a enfrentar.

“A gente foi criado mesmo no meio rural. Minha avó, com 93 anos, era lúcida. Ela escutava bem, ela conversava, tirava leite, fazia tudo”, contou. “Quando ela chegou em Mariana, colocaram ela numa casa. Até que a casa era grande, mas não tinha terreiro, não tinha quintal, não tinha nada, só parede. E rua, né? Rua com trânsito, barulho… então, a adaptação foi bem difícil. Não tem como descrever a situação de morar num lugar fechado, se sentir prisioneiro, dentro de uma gaiola”.

Janiele nos fala então de um detalhe curioso. Dentre todos os bens de sua família que estavam em Ponte do Gama, tudo que que eles conseguiram resgatar foi um galo.

Dona Valdemira ao lado das filhas; idosa morreu sem poder voltar à sua casa
(Arquivo pessoal)

“Um galo não, um franguinho. A única coisa que resgatou foi ele, o resto tudo morreu. E ele veio pra Mariana e foi morar dentro da gaiola. Então minha avó tava se sentindo como se fosse ele, preso”.

Preocupados principalmente com a avó, que não estava se adaptando à nova realidade, a família tentou voltar algumas vezes para o sítio em Ponte do Gama, mas foram sistematicamente barrados pela Samarco. Na época, a mineradora alegava que outras barragens corriam o risco de rompimento.

“Era muita incerteza e medo, revolta (…) a Renova só ficou nas promessas, que ia construir outra casa, que ia devolver o local como antes, até melhor, mas isso não veio a acontecer, que minha vó morreu antes”.

Dona Valdemira faleceu em 2020, aos 97 anos, sem conseguir voltar para a casa onde ele passou a vida inteira.

Sr. Edson e Dona Maria Julieta

Sete anos depois, a família de Janiele ainda aguarda por justiça, mas parte dela já não estará por aqui quando ela, porventura, resolver dar o ar de sua graça.

A primeira a falecer foi Dona Valdemira. No mesmo ano, Edson, o pai de Janiele, que havia heroicamente se embrenhado na mata para resgatá-la, também se foi. Pouco depois, foi a vez da mãe de Janiele, Maria Julieta.

“O meu pai veio a falecer no ano retrasado e até o último instante procurava justiça, pra reconhecer tanto direito de seus filhos como atingidos, quanto os direitos dele. No início, falaram que ele não tinha direito a nada”, disse Janieli. “Minha mãe também veio a falecer no ano passado, também sem ser reconhecida como atingida”.

Segundo Janiele, após a morte do pai, a família ainda não conseguiu dar seguimento ao processo de indenização por perdas e danos que ele ajuizou contra a mineradora, pois o inventário ainda não foi concluído. Nenhum dos filhos de Edson e Maria Julieta foram reconhecidos como atingidos até o momento. Por isso, assim que Edson faleceu, a Fundação Renova cortou o auxílio mensal que pagava ao pai de Janiele e que ajudava no sustento da família.

A tia de Janiele, Maria das Graças, ao lado da avó, Dona Valdemira.
(Arquivo pessoal)

Edson havia recebido, dois meses antes de falecer, uma proposta da Fundação Renova, mas recusou. Apenas neste ano, a família negociou com a Fundação Renova uma indenização referente apenas ao valor da casa de Bicas no processo de reassentamento familiar.

Sr. Edson e Dona Maria Julieta haviam se casado em Bicas em construíram suas vidas e criaram seus filhos por lá. Janiele conta que as propriedades da família em Ponte do Gama vinham passando de geração em geração há muito tempo, sem que ela saiba precisar quando eles chegaram por ali. Eles esperavam que os netos e bisnetos pudessem usufruir do que construído ao longo de mais de cem anos de trabalho.

O que sobrou foram saudades, tanto dos entes queridos que se foram quanto da vida deixada debaixo da lama, muita indignação e um sentimento de incerteza com relação ao futuro.

“Foi uma história que acabou, não tem nada lá mais. A gente não pode voltar lá, lá não nos pertence mais”.

Com a palavra, a Fundação Renova

A Fundação Renova é a entidade responsável pela mobilização para a reparação dos danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão, em Mariana (MG). Pedimos a ela um panorama das ações que foram tomadas nos últimos sete anos, para garantir a reparação dos atingidos.

Eis a nota:

O processo de indenização avança com a prioridade que o tema exige. Até setembro, a Fundação Renova pagou R$ 11,5 bilhões em indenizações e Auxílios Financeiros Emergenciais (AFEs) para mais de 403,8 mil pessoas. O processo foi acelerado pela implementação, em 2020, do Sistema Indenizatório Simplificado a partir de decisão judicial. Por esse fluxo foi possível indenizar trabalhadores informais como pescadores, carroceiros, lavadeiras e artesãos que não tinham como comprovar os danos causados pelo rompimento da barragem. Pelo Sistema foram realizados cerca de R$ 7,4 bilhões em pagamentos para mais de 70,3 mil pessoas. 

No novo distrito Bento Rodrigues, em Mariana (MG), a infraestrutura está pronta, assim como a escola municipal, os postos de saúde e serviços, arruamento, iluminação pública, redes de água e esgoto. Os bens coletivos estão com obras em ritmo acelerado: Assembleia de Deus, Igreja São Bento, Associação de Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues, Igreja das Mercês, praça São Bento e praça do Encontro. Com relação às casas, 78 estão prontas e 76 estão em construção (dados de 21 de outubro de 2022). A expectativa é de que cerca de 120 casas estejam concluídas no fim do ano. 

A Fundação Renova e a Prefeitura de Mariana assinaram, no dia 19 de outubro, um Termo de Compromisso que sustenta um Plano de Ação para garantir que os serviços essenciais estejam em pleno funcionamento e que as famílias possam planejar suas mudanças a partir do início de 2023

No novo distrito de Paracatu de Baixo, a infraestrutura também está concluída, as obras seguem focadas na construção de casas e bens coletivos. Com marcos temporais diferentes de Bento Rodrigues – por exemplo, o terreno de Paracatu de Baixo foi escolhido pela comunidade seis meses depois –, 56 casas estão em construção, além de escola Infantil, escola fundamental, posto avançado de saúde, posto de serviços, salão comunitário, praça Santo Antônio e estações de tratamento de água e esgoto. A previsão é de que 47 casas estejam concluídas em dezembro deste ano.

Na área socioambiental, os resultados do monitoramento da bacia do rio Doce demonstram uma tendência de recuperação, com a retomada dos parâmetros de qualidade da água em níveis históricos. A água do rio Doce é classificada como classe 2 pela legislação brasileira. Isso significa que ela pode ser consumida pela população após passar por tratamento convencional nos sistemas públicos de abastecimento, bem como ser usada para dessedentação animal e irrigação.  

Foi concluída a revegetação nas áreas diretamente impactadas pelo rejeito, trabalho realizado em mais de 200 propriedades rurais localizadas em Mariana, Barra Longa, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado e Ponte Nova, em Minas Gerais. Em terrenos em que não houve depósito de rejeito, uma área equivalente a 28 mil campos de futebol está sendo reflorestada por meio de editais que ultrapassam R$ 800 milhões em Minas Gerais e no Espírito Santo. 

Mais de R$ 720 milhões para projetos de saneamento nos municípios impactados. Segundo o Comitê da Bacia Hidrográfica da Bacia do Rio Doce, 80% do esgoto gerado pelos municípios atingidos são despejados diretamente no curso d’água sem tratamento. Esses investimentos podem levar o rio Doce a um patamar de despoluição que não se vê há anos. 

Outros R$ 830 milhões foram disponibilizados para os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, além de prefeituras dos municípios atingidos, para ações de infraestrutura, saúde e educação.  

No total, até setembro de 2022 foram destinados R$ 24,73 bilhões às ações de reparação e compensação. 

Pedro Munhoz[email protected]

Editor de Política do BHAZ. Graduado em Direito pela Faculdade Milton Campos e em História pela UFMG, trabalhou como articulista de política no BHAZ entre 2012 e 2013. Atuou como assessor parlamentar desde 2016, com passagens pela Câmara dos Deputados, Câmara Municipal de Belo Horizonte e Assembleia Legislativa de Minas Gerais.

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