Mineirão vira palco de assédio e racismo, vítimas relatam traumas e querem banimento de agressores

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Crimes foram praticados em jogos do Atlético no Mineirão (Bruno Sousa/Atlético)

“Pior dia da minha vida”, “Perdi minha liberdade”, “Tenho medo que aconteça tudo de novo”. A temporada vitoriosa do Atlético dentro das quatro linhas, em 2021, será inesquecível para os torcedores. No entanto, algumas marcas também ficarão guardadas na memória de outros por conta de violências sofridas dentro do Mineirão, na Pampulha, em Belo Horizonte.

Os casos de importunação sexual e injúria racial tomaram o noticiário em jogos do Atlético no Mineirão desde a volta das torcidas aos estádios. Para se ter uma ideia, no mês de novembro houve pelo menos uma queixa do tipo registrada na Polícia Militar em cada partida disputada no Gigante da Pampulha. Foram oito casos e nove vítimas. O Mineirão estuda medidas para conter esses tipos de crimes e ainda a criação de um setor somente para mulheres no estádio. A Polícia Civil investiga todos os casos registrados dentro do estádio.

O BHAZ voltou a entrevistar algumas destas vítimas para saber como elas estão, procurou ainda a administração do estádio questionando o que vem sendo feito para evitar que o Mineirão continue sendo palco de crimes e conversou com uma psicanalista para entender o comportamento das pessoas. Os torcedores alvos dos criminosos defendem o banimento de quem comete tais práticas. 

A torcedora Débora Cotta foi agarrada e beijada à força enquanto acompanhava o jogo do clube do coração contra o Corinthians. “Fico surpresa ao ver o grande número de casos que estão sendo denunciados, mas não me surpreende, infelizmente. O assédio sempre existiu”, comenta.

Em pleno Dia da Consciência Negra, Carlos Miguel Lopes e o irmão foram vítimas de injúria racial. O fato aconteceu na vitória contra o Juventude por 2 a 0. Eles foram chamados de “bando de macacos” por um homem. Assim como Débora, ele não se mostra surpreso com as denúncias.

“O susto fica por conta do número de pessoas procurando a polícia. Só que sabemos que isso infelizmente acontece. Tudo que estamos vivendo é reflexo do atual governo do país que deu aval para estas pessoas saírem se manifestando desta forma”, pondera o publicitário.

Uma torcedora, que prefere não se identificar, diz acreditar que há muito mais casos do que os noticiados. “Acho que tem mais. Eu fui vítima de importunação sexual e muitas meninas têm medo de denunciar quando sofrem algo do tipo”. 

Experiência traumática

Os casos têm em comum a busca por um momento de lazer e que, de repente, se transformou em experiência traumática. As torcedoras e o torcedor curtiam o momento quando tiveram que se deparar com agressores na multidão. Os traumas deixados fizeram com que alguns abrissem mão de ver o time do coração jogando em BH.

“Por mais que eu queira voltar ao estádio, há uma insegurança muito grande. O medo de que tudo aconteça de novo. A gente lida com o racismo todos os dias e para acontecer mais uma vez é muito simples”, conta Carlos.

O publicitário chegou a comprar ingresso para ir ao jogo contra o Fluminense, mas acabou desistindo. “Me senti inseguro e fui para outro compromisso. É muito ruim essa sensação de querer ir a um lugar, mas não sentir segurança”.

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Volta da torcida trouxe a retomada de práticas criminosas nos estádios (Bruno Sousa/Atlético)

Débora já voltou ao estádio depois do ocorrido, mas comenta que tudo mudou. “Sozinha não vou mais. Quando chego sinto uma coisa estranha e até difícil de descrever. Isso tudo é ruim, pois o Mineirão é o meu lugar preferido. A única coisa que faço é ir ver o Galo e perdi minha liberdade”.

A torcedora sequer se sente segura de vestir short para acompanhar o jogo do time. “As coisas mudaram neste sentido. Me deu este baque”.

Saber precisar quando vai retornar ao Mineirão é difícil para a torcedora que opta pelo anonimato. “Meus amigos foram no jogo da entrega da taça [de campeão Brasileiro], mas não me senti confortável o suficiente. Não sei quando vou. Sinto que perdi o direito depois da importunação que sofri”.

Abalo psicológico

Experiências traumáticas como as vividas pelas vítimas abalam muito mais do que se pensa. O acompanhamento psicológico vem sendo a forma encontrada para lidar com as consequências deixadas. “Estou muito abalada psicologicamente. Não gosto nem de ficar falando sobre o que vivi. Foi o pior dia da minha vida. Venho fazendo terapia e tendo acompanhamento psiquiátrico”, comenta a torcedora anônima.

Débora vive atualmente o que ela mesmo chama de “momento de revolta”. “A tristeza passou e agora estou na revolta. Quando vou no Mineirão, fico na retranca ao ver um homem se aproximando. Para lidar com estes sentimentos, o controle com psicólogo está sendo muito bom”.

Mesmo com as sessões de terapia, Carlos Miguel afirma ser difícil lidar com o “medo”. “É angustiante ter medo de ir nos lugares. Tudo aquilo que passamos feriu não só eu e meu irmão, mas nossos amigos e quem gosta de nós. Aquele discurso [do agressor] mata pessoas todos os dias, tanto por dentro como por fora. É muito difícil esquecer”.

Casos mais frequentes ou mais denunciados?

Em entrevista ao BHAZ, Thalita Rodrigues, doutoranda em Estudos Psicanalíticos/UFMG, psicanalista e psicóloga social, lembra que é importante refletir se esses casos estão mesmo acontecendo com mais frequência ou sendo denunciados com mais intensidade. “Talvez as pessoas agora, devido às mudanças, aos debates sociais, a opinião pública, estejam mais preparadas para ouvir, receber e se indignar com essas denúncias”.

Para a psicanlista, todo esse processo de mudanças e avanços sociais sobre as questões de desigualdade, discriminação racial e sexual ganham força com essas discussões.

“Esses corpos de pessoas pretas, mulheres, LGBTQIA+, que gostam de futebol, estão também se sentindo mais seguros para frequentar esses espaços. Isso também pode ser um motivo para esses crimes estarem cada vez mais sendo denunciados. Esses avanços têm propiciado que as pessoas se sintam mais acolhidas ou menos diminuídas, envergonhadas em denunciar essas situações de violência que sempre aconteceram e ainda acontecem, infelizmente”.

Sensação de impunidade

Outro ponto importante é entender o motivo dos agressores se sentirem mais seguros quando estão em “bando”. “Esses fenônomenos de grupo têm sido estudados há muito tempo, pois realmente é algo impressionante. Como que as pessoas tendem a se permitir a tomar determinadas atitudes quando estão acompanhadas, mas não fariam se estivessem sozinhas? Isso acontece justamente pelo motivo de se sentirem autorizadas e menos visadas, menos responsáveis pelos atos cometidos em grupo”.

Rodrigues destaca também que um fenômeno muito estudado pela psicologia social é o do linchamento. “Como que as pessoas quando estão em grupo, se sentem mais autorizadas a serem violentas. Tem esse fenômeno de pertencimento, sentir-se parte de algo maior e esse sentimento também diminui a carga de responsabilidade pelos atos cometidos”.

“Com isso, a pessoa tem a impressão que será menos responsabilizada, penalizada pelo que ela fez. Afinal de contas, o infrator pensa que era apenas mais um nesse grupo. Claro que isso não pode ser um agumento para diminuir a responsabilidade dessas pessoas. Eles se sentem menos responsáveis, mas continuam sendo”.

‘Calor do momento’ não justifica assédio

Para justificar a violência, um dos assediadores chegou a dizer que cometeu o crime por conta do “calor do momento”. A psicanalista explica que sempre haverá tentativas de mascarar situações inaceitáveis, especialmente quando falamos de violência.

“Um exemplo clássico de violência contra as mulheres é o agressor dizer que aconteceu pelo fato de estar alcoolizado. É uma justificativa que converge em alguma medida com essa ideia de ‘calor do momento’. Teve um gol, fiquei alvoroçado, excitado e senti que eu poderia invadir o corpo dessa outra pessoa. É importante perceber também que não foi a invasão de qualquer outro corpo, foi o corpo de uma mulher, corpos femininos”.

Ela reforça que no “calor do momento”, a pessoa ainda sim tem algum tipo de julgamento e não sai beijando ou batendo em qualquer outro. “Isso sem dúvida é uma tentativa de mascarar situações inaceitáveis. Mas há questões anteriores que os assediadores utilizam como justificativas para seus atos de assédio e violência”.

O que fazer para evitar?

Os torcedores entrevistados são unânimes em defender o banimento dos agressores de frequentar o Mineirão. Para eles, esta é uma forma, aliada com punição severa pela Justiça, para evitar novos casos.

“Defendo o banimento e mais do que isso, sou a favor de uma punição mais rígida da Justiça. No meu caso, o agressor foi liberado por falta de provas. A impunidade faz com que a pessoa se sinta confortável e no meio da multidão acha que é mais fácil para praticar e que não será identificado”, opina a torcedora em anonimato. 

A identificação do suspeito é o primeiro dos passos a serem seguidos para que a Justiça seja feita, segundo Carlos. “Depois de localizar tem que banir. É uma coisa boa a se fazer porque, pelo menos, naquele espaço as vítimas vão poder ficar tranquilas. Digo isso pois não sei qual seria minha reação ao encontrar o agressor no estádio”.

“Tudo mundo acha que em estádio tudo é permitido, que é terra sem lei. O Mineirão deveria banir para dar exemplo. Emitir nota falando que lamente não tem sentido, caso nenhuma medida seja tomada. Será que o estádio fica só pelo lucro?”, indaga.

Quem pratica crimes no estádio deve ser impedido de frequentar o espaço, segundo Débora. “São pessoas que não podem conviver numa multidão. O Mineirão tem que banir e melhorar os seguranças que não têm preparo nenhum para nos ajudar nestes casos. Colocar mais seguranças femininas já ajudaria, pois elas têm mais empatia”. 

Banimento ajuda, mas sozinho não resolve

Com tantos casos, alguns setores da sociedade, e as próprias vítimas, pedem o banimento dos criminosos dos estádios. Porém, a psicanalista acredita que somente isso não é suficiente. “Existem várias abordagens, além do banimento, mas elas podem simultâneas a essa prática”, diz a psicanalista.

“Me chamou muito a atenção, lendo as reportagens sobre os últimos casos no Mineirão, em como a nota de repúdio é algo comum. Mas em que isso muda na prática? A experiência desses corpos que são violentados e vistos como mais violentáveis. Os corpos das pessoas pretas, mulheres, LGBTQIA+. Em que isso de fato muda? Como que eu, uma mulher preta, vou me sentir mais segura indo ao estádio só pelo fato de uma nota de repúdio ter sido emitida?”.

A doutoranda explica que é necessário, enquanto medidas para abordar essa questão dos assédios e violência, que haja campanhas de conscientização e também de responsabilização.

“É importante que as pessoas que estão naquele local, que elas entendam a necessidade básica e fundamental de respeito ao corpo e ao espaço do outro. E que, caso elas não cumpram isso, que sejam responsabilizadas. É preciso que haja uma estrutura para dar suporte às pessoas que foram e serão vitimadas por assediadores”.

“E que os infratores também sintam a responsabilização acontecendo com elas. Se o banimento desses torcedores for uma forma eficaz dessas pessoas se sentirem responsabilizadas, que seja isso. Afinal de contas, se elas cometem esses tipos de crimes e são reincidentes, estão dando um indício muito explícito que elas não estão aptas a frequentar esses espaços. Só banimento não é suficiente, ele precisa vir junto com práticas de educação e conscientização”.

Plateia só assiste assédios

Alguns casos de assédio foram vistos por outras pessoas, que escolheram não fazer nada. Mas qual o motivo? “É preciso pensar num traço cultural brasileiro, que é a lógica de não intervir, não pensar que você tem alguma coisa a ver com a situação”, explica a psicanalista.

“Precisamos ter responsabilidade, atenção com as coisas que acontecem ao nosso redor. Essas pessoas acabam optando por não fazer nada por acreditarem que não têm responsabilidade, que não devem se intrometer na situação. Afinal de contas, não é com ela que está acontecendo. É uma prática lamentável, mas muito presente na cultura brasileira, de se isentar”.

A psicanalista acredita que são pessoas que não se enxergam como potenciais colaboradores ou de suporte para as vítimas. “Esses tipos de pessoas precisam ser vistas também como co-responsáveis por essas situações de assédio e violência, pois estão sendo coniventes com a situação. É necessário que a gente também trabalhe, pense, reflita e se conscientize sobre a nossa situação em momentos de violência”.

“Mesmo quando não somos os autores diretos disso. Se a gente está vendo essa situação acontecer, e não está fazendo nada, nós estamos sendo aliados do agressos, uma vez que você está permitindo minimamente que o crime continue acontecendo”, completa.

Mineirão

Diante dos episódios registrados no Mineirão, o BHAZ entrevistou Vitor Komura, gerente de comunicação e marketing do estádio. Indagado sobre a possibilidade de aumentar o efetivo de seguranças, ele afirmou que “tem sido feito um estudo”.

“Independentemente de quantos seguranças tiver, se o cara quiser, ele vai cometer [o crime]. Está sendo estudado o aumento no número do efetivo de seguranças e tentamos fazer com que todos [os torcedores] sejam conscientizados”, diz,

A conscientização citada por Komura passa pelas campanhas realizadas pelo Mineirão. Segundo ele, o aumento no número de queixas se dá em decorrência das ações feitas pelo estádio.

“Os casos de importunação sexual acontecem há muito tempo. O que tem acontecido é que as pessoas estão denunciando e nossa campanha faz com que elas se sintam encorajadas. O que queremos é que a pessoa não se cale, seja o que for que aconteça”.

O tratamento recebido pelas vítimas já foi alvo de críticas. Komura destaca que uma cartilha foi entregue para os segurança sobre como lidar em casos de importunação sexual, LGBTQIA+fobia, injúria racial e em outros casos.

“O primeiro passo é ouvir, depois entender e por fim não fazer juízo de valor e dar o devido encaminhamento. Já vemos evolução na atuação dos seguranças e seguimos fazendo capacitação constante. O treinamento que é passado é para todos os tipos de crimes. Os nossos canais de denúncia são os mesmos, seja para importunação sexual, injúria e LGBTQIA+fobia”.

Setor feminino

O Estádio Nilton Santos, no Rio de Janeiro, vai ter um setor apenas para as mulheres. O objetivo é, justamente, evitar crimes de importunação. E o Mineirão? “Existe uma discussão muito grande em relação a criar setor só para as mulheres. Estamos estudando com as torcedores, pois isso acaba segregando o espaço e ela vai deixar de assistir o jogo com outras pessoas”, explica Komura.

Banimento

O gerente de comunicação e marketing do Mineirão descartou a possibilidade do estádio banir o torcedor que comete alguma prática criminosa nas dependências, mas alegou que “conversas” acontecem.

“Não cabe diretamente a gente. Não temos poder da caneta para legislar. Para proibir precisa vir do poder público. Temos conversas sobre banimento com clubes, autoridades e poder público. Não somos nós que temos que determinar pena”.

Investigações

As vítimas entrevistadas pelo BHAZ contam que pretendem processar os agressores. “A denúncia já está formalizada e pretendo seguir a diante. Alguém que pratica importunação sexual no meio de 60 mil pessoas não pode conviver, pois é um criminoso”, diz Débora.

O publicitário Carlos vai seguir com a denúncia para que a impunidade não aconteça. “Vamos processá-lo, porque os danos causados foram maiores do que apenas o ato de falar. Ele causou coisas na gente que não tem como mensurar”. A torcedora que optou pelo anonimato está se reunindo com a advogada para resolver os trâmites visando processar o agressor.

A Polícia Civil foi procurada pelo BHAZ e esclareceu que os casos registrados estão sendo investigados. O de Carlos e do irmão está “em fase final de apuração”.

Os relacionados à importunação sexual vêm sendo apurados pela Delegacia de Investigação à Violência Sexual. “Diligências estão em andamento para identificação dos autores”, informou em nota que pode ser lida abaixo.

Nota da Polícia Civil

“A Polícia Civil informa que as investigações de importunação sexual registradas em 3,10 e 20 de novembro, ainda estão em andamento na Delegacia Especializada de Investigação à Violência Sexual. Diligências estão em andamento para identificação dos autores. O fato registrado no último dia 28/11, o suspeito conduzido foi liberado e aguarda a conclusão das investigações. Em 7 de novembro, o suspeito de importunação sexual foi preso em flagrante. Inquérito já em fase final de apuração. Em relação aos casos de injúria racial ocorridos no Mineirão, a PCMG informa que o inquérito policial, onde figura como vítima uma mulher de 37 anos, está em andamento na Delegacia Especializada de Investigação de Crimes de Racismo, Xenofobia, LGBTfobia e Intolerâncias e diligências estão sendo realizadas para a devida identificação do autor. A investigação que envolve dois irmãos, e possui suspeito identificado, já está em fase final de apuração. Outras informações serão repassadas ao final das investigações para não prejudicar o andamento do feito”.

Edição: Vitor Fernandes
Vitor Fernandes[email protected]

Sub-editor, no BHAZ desde fevereiro de 2017. Jornalista graduado pela PUC Minas, com experiência em redações de veículos de comunicação. Trabalhou na gestão de redes do interior da Rede Minas e na parte esportiva do Portal UOL. Com reportagens vencedoras nos prêmios CDL (2018, 2019, 2020 e 2022), Sindibel (2019), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).

Vitor Fórneas[email protected]

Repórter do BHAZ de maio de 2017 a dezembro de 2021. Jornalista graduado pelo UniBH (Centro Universitário de Belo Horizonte) e com atuação focada nas editorias de Cidades e Política. Teve reportagens agraciadas nos prêmios CDL (2018, 2019 e 2020), Sebrae (2021) e Claudio Weber Abramo de Jornalismo de Dados (2021).

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